A terra dos Vallensarnov tomava sete colinas com mansões e hectares de vinhedos.
Os filhos menos bem sucedidos do conde eram todos vizinhos.
E viviam como ninguém mais em Guarnidora.
De vestes limpas, dos filhos de Bórgias, Tíwaz caminhou além da carruagem a vapor, cujo motor barulhento, de expostos ferros intrincados, perdia fumaça por toda a entrada da mansão.
A maior das construções vigiava o território do topo da colina nordeste. Paredes de rochas escuras e madeira cinzenta de eucalipto. Janelas altas, de vidros fumê nos dois andares.
Das chaminés, finos fios de fumaça contorciam-se no ar, amargando o aroma úmido dos eucaliptos que se revelavam espaçados, memórias do antigo bosque desmatado onde se viam fileiras de vinhas por cercados.
— Isso é o senhor Tíwaz? — ressalvou o mordomo Wírt, contrariado.
Mesmo após o banho, tendo Bórgias despido-o e jogado baldes de água fria nele, ainda na cela, o menino era reles prisioneiro coberto de cortes e hematomas, com dificuldade para cicatrizar devido à anemia.
— Ele de senhor tem o que temo da morte. — rosnou à frente Bórgias, acostumado aos corredores da mansão.
Curiosas, algumas das crianças acompanharam a passagem do trio entre os cômodos, com as servas afastando-as.
O televisor permanecia ligado, a imagem chuviscada em preto e branco, o pináculo da tecnologia moderna. Foi a primeira vez que Tíwaz viu um desses aparatos.
O cheiro férreo, putrefato e permanente, era o mesmo em qualquer abastada propriedade.
Sempre com a porta trancada, o oratório, com a enorme cruz em ouro, era a origem do miasma lúgubre.
O corpo nu da serva crucificada, mórbida sangrando, esperava para alimentar o conde.
Quando chegaram na biblioteca, deixou-os Wírt.
— Sabe de algo? — indagou Tíwaz perdido.
— Cale a boca, e só fale quando ordenado.
— O conde não te contou o motivo de me chamar… — a condescendência de Tíwaz irritou o guarda, que o socou na face.
O garoto caiu, com nariz e boca sangrando, e, quando se preparava para receber outro golpe, a porta foi aberta.
— O que significa essa selvageria em meus domínios? — o assustado conde Alexei gritou pelos seus. — Guardas!
— Meu Senhor! — Bórgias levou a mão ao sabre instintivamente, e os olhos dele, de cor uísque, vibraram em tons lilases.
Outros guardas, de menor patente que o coronel, entraram na biblioteca quase de imediato.
— Acompanhem-no. — e a mão do coronel Bórgias afastou-se do sabre, obedecendo à autoridade. Após a saída dos guardas, o conde falou ao garoto, demonstrando atração pelos ferimentos, evitando aproximar-se. — Consegue levantar? O que fizeram com você?
Deduziu Tíwaz que aquele sentimentalismo era pérfido, mas resolveu entrar no jogo, na farsa pretendida pelo nobre.
— Minha presença foi ordenada? — o adolescente quase desmaiou, todo o corpo doía, e o sangue gotejava do nariz ao mogno que era piso.
Alexei não respondeu de imediato, colocou delicado lenço rente ao rosto do menino, interrompendo a hemorragia. E presumiu:
— Não teve o desjejum?
A pergunta soou como troça a Tíwaz:
— Receio que não.
— Venha, mandarei servir o que temos de melhor. Consegue me acompanhar?
Para comer? Levantou-se de imediato.
E atravessaram os corredores andando lado a lado, como se íntimos e não totais desconhecidos.
Aquele cuidado estranho intrigava o adolescente, que tinha o costume de não se permitir a esperança.
Ele sabia que não era alguém bondoso ao lado, porém, não chegava no motivo por trás da mefítica caridade.
E resolveu não pensar nisso enquanto saboreava da sopa, cremosa, de beterraba e repolho, com peito de faisão, e molho de cenouras adocicadas e cebolas douradas. Ou devorando os bolinhos de massa de batata, com páprica defumada e cogumelos silvestres, salteados com sálvia bem temperada.
Até o pão rústico tinha sabor, e Tíwaz encheu-os de legumes marinados, enquanto repetia a sopa, e provava pela primeira vez de algo tão doce e saboroso, o creme de leite com mel e frutas vermelhas, junto do purê de nozes e avelãs.
Tudo isso segurando o pano com sangue seco.
Após a refeição, o lenço foi oferecido de volta a Vallensarnov, que moveu a mão e uma das aias menores, com bandagens dos pulsos aos cotovelos, levou-o.
— Acho que agora podemos conversar. — Tíwaz não interrompeu, e o nobre reiterou. — Anualmente há aquele momento de grande espera ao redor das casas nobres, isso em todo o mundo. — percebendo que Tíwaz não fazia ideia do que se tratava o assunto, foi-lhe ensinado. — Os estudos na Academia Arcana da Árvore Cinzenta sempre foram disputados. Há mais nobres que vagas. Estudar lá é ter o futuro insigne, independentemente da idade de convocação ou do título nobiliárquico.
— Seus filhos estudam lá?
— Seis esposas, seis úteros putrefatos. Meus vinte e sete herdeiros foram transformados em Academias Arcanas menores. — lamentou o conde. — Desde o fim da Chuva foi dado ao Séquito das Oráculos essa função, de preterir. Recebem em sonhos os nomes, e as localizações dos predestinados. Assim são evitadas contendas entre os reinos. Aos mortais, não há maior prestígio.
— Parece complicado. — eram costumes de um mundo que Tíwaz desconhecia, mesmo que não desgostasse, afinal, aquele assunto sem sentido enchera a barriga dele.
— É mais simples do que parece. Você foi eleito. — a frase foi dita comumente, enquanto o nobre bebia da xícara de chá acescente.
— Isso é impossível. Não tenho residência. Nem nada, na verdade. Como me encontrariam?
— O sagrado Séquito nunca erra. E eu recebi esse papiro. — o mesmo foi entregue ao jovem, com muitos hieróglifos desconhecidos ao menino, na linguagem unificada.
— Não sei ler em unificado. Não tem como terem me mandado essa mensagem.
— Justamente, não enviaram a você, está endereçado a mim.
— Porra! — a surpresa do jovem não alterou a expressão do conde, dedicado ao chá de orquídeas com sangue e vinho seco.
— Todavia, tudo nesse mundo tem seu preço. — decretou Alexei Millis Xaria Vallensarnov. — Em troca de meu perdão por seus crimes, adotar-te-ei. Nunca se esqueça… — e foi ensinado. — ... o fim do capital é o fim das relações.
O nobre era o verdadeiro responsável pelas torturas.
E oferecia preço pelo silêncio do plebeu, no entretanto, Tíwaz só era bom em três coisas, correr, roubar, e negociar.
— Quero que eles queimem, os seis guardas. E que seja esse também o fim do dono da propriedade onde me sangravam. — e leu Tíwaz, abaixo do brasão esculpido na parede da sala de jantar. Eram runas do norte, o único idioma que o menino conhecia. — Empatia é covardia. — o lema dos Vallensarnov.
Tíwaz fingia ter o controle da situação, e, em segredo, via-se preparado para abrir mão da maior parte do exigido.
Conseguindo apenas a fogueira de Bórgias, ainda seria o suficiente, contudo, o conde anuiu.
Alexei avaliara valores, e abriu mão do que a ele era instrumento.
É a instrumentalidade humana a incapacidade de discernir a vida que lhe serve de ferramentas de trabalho. Quando gasta, deve ser descartada. Quando incapaz, deve ser substituída.
Também, é transformar a mente do homem instrumentalizado. Em toda a vida, Bórgias nunca se atrasou para o trabalho. E preferia abandonar a esposa e os filhos doentes a faltar.
O coronel mataria pela lei, e morreria pelo que acreditava, e isso era o quê? O que foi ensinado a crer, o que favorecia àquele que lhe era senhor, e ninguém mais.
Para Alexei, ter um filho, mesmo um adotado, entre eleitos da Árvore, significava benefícios fiscais incomparáveis, além da elevação do nome da família para outro patamar de nobreza.
Naquela mesma noite, todos os torturadores foram sentenciados à pira, e os benévolos Vallensarnov de Vã Guarnidora adquiriram nova descendência.
