A localização de Marés entre Nuvens sempre mudava ao longo do tempo.
Levava quatro anos para a ilha flutuante dar a volta ao mundo, sobrevoando todos os dezesseis territórios, por oriente e ocidente.
Era o vigésimo nono dia de viagem de Donatien, e o trigésimo quarto dia de Tíwaz.
Passavam o tempo jogando cartas, e contando histórias, e dormiam como os demais, com mantas nos próprios bancos.
Sem modos, e sem se importar com o que diziam, Donatien por vezes dormira na mesa ou nos vãos entre os bancos, evitando a dureza dos assentos.
O som do escarcéu dos novatos atiçou a todos, e, subitamente, gritos ecoaram.
De entre as nuvens emergira outro dirigível, tão imponente e barulhento quanto o Via Gáudio.
Voaram lado a lado, até que as brumas carmesins tornaram o dia em noite, indicando as docas da destinação.
Houve certa decepção, a cerração vermelha cobria toda a ilha, e quase nada do monte ou do Palácio de Obsidiana pôde ser visto.
Tal poder vampírico permanecia ativo durante todos os dias, evitando que a luz diurna tocasse qualquer parte da ilha flutuante.
Mesmo o porto permanecia enevoado em rubro, e da estrela Fênix só se enxergavam reflexos reluzindo em bronze, nos metais dos dirigíveis, em fila, com as nuvens soprando contra os cascos das proas. Eram muitos, e vinham de todo o mundo.
Quando desceram, Tíwaz seguiu na frente, levando a mala de mão com tudo o que possuía da vida.
Outros alunos, segundanistas, guiaram os primeiranistas, entrando em túneis de rocha polida alcançando grutas aclaradas por lampiões elétricos.
Quando Tíwaz ameaçou se perder, um dos alunos mais velhos o guiou de volta aos conhecidos.
— Esse lugar é inacreditável. Não sei onde começa ou termina. — todos os alunos andavam desorganizados, falando em linguagem unificada, mas com os mais distintos sotaques, aparências, cores, e uniformes militares. — Olha aquela fhauren, Vallensarnov!
— Não aponta, porra! E não fale tão alto, ela te entende, talvez até melhor que eu. — eles se afastaram, ainda impressionados.
A fhauren em questão tinha cabelos pretos, longos e ondulados, até os joelhos. Magra, e alta. Trajava o uniforme militar do reino de Salar, no território de Espinha de Foetüs, em tecido branco e cinza.
Era competição de beleza e opulência.
As fhaurens, nascidas vampiras, pouco diferiam de humanas transformadas, exceto pelas longas orelhas. Eram sempre fêmeas.
Todas em uniforme militar do respectivo território de nascença, tendo alguns desses mais de um reino, e, consequentemente, mais de um uniforme.
Tíwaz esbarrou com a fhauren de orelhas com brincos, piercings, e finas correntes de ouro unindo-os aos piercings nos lábios e narinas, descendo por dentro do sobretudo inteiro negro do uniforme de Sempre Noite.
O plebeu pensou que seria esmagado se a enfrentasse.
Ele até quis se desculpar, mas, fascinado, nada esboçou.
Caminharam por duas horas e meia até a sala de descanso dos duelistas. Quando chegaram, deitaram nos divãs.
— Que tipo de lugar é esse? Vi carruagens, poderiam ter nos ofertado carona.
Tíwaz, acostumado a andar, pouco afligiu-se. Notava o contrário no amigo, sem fôlego após tantos corredores, ruas, avenidas e escadarias.
Ao redor, nas paredes, todo tipo de armamento.
Espadas e machados de tamanhos variados.
Arcos e bestas.
Maças e alabardas.
Escudos de muitas formas.
Garras, foices, lanças, flechas, punhais.
Armas orientais e ocidentais como troféus, aguardando a escolha que foi postergada.
Juntos, os dois iniciaram o banquete, as servas assistindo-os até Tíwaz obrigar as primas a comer com eles.
A grande mesa central aguardava-os com a carne de dois cervos inteiros.
Porcelanas com pirões de lombo, com legumes assados e aroma de alecrim e azeite. Empadas folhadas recheadas com espinafre e coração.
Coxas e costelas que mais pareciam esculturas elaboradas, ante travessas de arroz negro e inhame.
Terrinas de beterrabas e abobrinhas finamente fatiadas, com tentáculos de lula, enguias fritas, lagostas, camarões, e peixes variados.
Por toda uma hora o salão de descanso, preparado como refeitório para recebê-los, escutou os sons das dúzias de fúlgidos talheres, usados sem nenhuma cordialidade por todos os presentes, batendo contra as louças.
Brindavam com as taças, deliciando-se com vinho tinto e cerveja verde, que os caliginitas chamavam porca.
Em longas mesas de cipreste, dispostas contra as paredes de rocha natural, fartavam-se os quatro.
Quando seguiram às sobremesas, foram devoradas tortas de pera, maçã e maracujá, pudins de chia com manga, bolos de limão e aveia, sempre usufruindo da fonte de chocolate amargo derretido, rodeada por frutas frescas.
Os servos uniformizados da Árvore, de libré encarnada, que apareciam para trocar as bebidas e levar os pratos vazios, nada diziam, curiosos com o reservado para depois dos discursos cerimoniais.
Nas tribunas, vários dos mestres falavam às câmeras de televisão, que transmitiam as imagens da arena principal para todo o mundo.
— Não entendo nada também. — Tíwaz respondeu quando perguntado sobre os discursos, distorcidos pela arquitetura rústica ao redor, e pelas microfonias, estáticas, e interferências do sistema de rádio.
— Sua voz e palavras, de que cidade você é? — Donatien frequentava soirées desde a infância, e nunca encontrou com aquele fronteirano.
— De uma vila menor, Boreal. — não quis assumir ser adotado, para evitar demasiados questionamentos, e pensou no lugar mais distante por onde passou, terra gélida e desolada, no centro de Nova Fronteira.
Pomarola estremeceu, e entusiasmou-se Donatien:
— Que coincidência! Pomarola também é de lá. Não sabia que tinha um Vallensarnov naquele fim de mundo, com todo respeito, minha cara.
— Eu também não sabia. — Pomarola não se ofendeu com o tom do Senhor, e estufou o peito, orgulhosa por ter o conterrâneo entre os eleitos. Ela caminhou até Tíwaz, que se encolheu, elegíaco com a falta de sorte na escolha da mentira. — Você não parece serrano, de que parte de Boreal você é? Eu conheço tudo por lá, antes de ser contratada explorava com minhas irmãs e irmãos, as ruínas eram nossas diversões, e o centro nosso sonho de estar.
— Na verdade, fui escondido lá, nobres têm relacionamentos demais, e parentes não planejados.
— Sinto muito, não queria te pressionar. — Gremory retrocedeu na curiosidade, e depois, quando foram chamados por alunos terceiranistas, os televisores da sala de espera começaram a transmitir as imagens da arena externa. — Quantos desocupados estão assistindo essa porra?
O nobre recebeu de Zenith a herança familiar, a Lâmina do Limiar, espada de corte de rubi e empunhadura de carbúnculo.
Tíwaz escolheu pelo peso, espada leve e escudo, das opções na sala de espera.
— Sua mãe deve estar orando de joelhos na sala. — importunou-o Zenith um pouco mais. — Não passe vergonha. A cidade toda espera ser representada com boa exibição.
— Vendo-te está o mundo todo, meu senhor! — Pomarola era a pura euforia, e adicionou mais estresse ao nobre.
Enquanto caminhavam, Donatien implorou:
— Por favor, Tíwaz…
— Não se preocupe. — garantiu o garoto. — Venha com tudo e vença com um só golpe. Minha palavra é minha verdade.
— Será que não vão desconfiar?
— Talvez, e confesso, ainda não fui mordido.
— Não sei, vai ter que começar a maldição do primeiro passo.
Tíwaz teria, de qualquer forma.
— Colocamos a culpa naquele mestre que nos escolheu. Ele não perguntou sobre minhas habilidades.
— Isso é cruel. — Donatien aos poucos viu a lógica, e passou a apreciar a ideia. — Pode funcionar, ele também não perguntou sobre minha formação. Irritei-o com o atraso. E você? Que fez para o desgraçado?
— Receio que o mesmo.
— Como?
— Vestimentas. Modos e educação não são o meu forte. Sou um caipira, afinal.
Encarou-o Pomarola, sentindo-se representada.
— Claro, sou péssimo também. — não parecia isso.
Na verdade, Donatien era o retrato da figura mais esnobe que Tíwaz já havia encontrado, vestiam o mesmo uniforme fronteirano, e, paradoxalmente, eram opostos da cabeça aos pés.
No final do corredor, recebeu-os a arena de mármore branco.
Na arquibancada, estando a maior parte ainda vazia no início do evento, quarenta mil alunos aplaudiam os novatos.
O juiz contou os dez passos de separação e autorizou o embate.
Moveram-se os dois, e trinta e sete milhões de pessoas espalhadas ao redor do mundo testemunharam, o sangue se espalhando após o primeiro golpe.
O público se calou conforme o vermelho coloria o ar, junto de ossos, órgãos, vísceras e metais do escudo e da lâmina destruída.
Matar era algo proibido, punido com a pena capital.
Desesperado, Donatien moveu as mãos em direção à carne aberta do cadáver de Tíwaz, e cortou a própria palma esquerda com a lâmina de rubi, tentando regenerar o corpo com o sangue derramado.
No andar mil setecentos e trinta e seis do Palácio de Obsidiana, num almoço entre reis e rainhas, Tsaritsa dos Svellyr, a atual chanceler da Academia Arcana da Árvore Cinzenta, desembainhou sua espada, a Aura Sestra.
Tsaritsa cortou e derrubou a parede leste, sem que nenhum dos presentes visse o movimento, apenas o sentindo quando os ventos atraíram os corpos dos presentes, gritando, para a beira do precipício.
Entre as nuvens depois de saltar, a chanceler alterou o próprio corpo, rasgando as costas, criando asas cobertas de sangue, como os olhos acendendo, e a pele enrijecendo deformada coberta de pelos avermelhados.
Atravessava o ar na velocidade do som, e perdia partes do uniforme militar e da pele se regenerando.
O impacto dela pousando na arena principal levantou a nuvem, de poeira, que cobriu todo o estádio.
Tsaritsa tocou o cadáver estraçalhado com a espada, o atravessando na altura da garganta.
A pele dela se distorceu, expandindo-se ainda mais.
A feição do rosto foi alterada, com a quebra e reconstrução craniana.
Os músculos nas costas explodiram se regenerando, recriando tecidos celulares e ossos, Tsaritsa dobrou de altura, com a pele adquirindo a coloração dos músculos expostos. A feição inumana, demoníaca.
Após perfurar os próprios pulsos com as garras, e sangrá-los, a chanceler enfiou as duas mãos no peito aberto de Tíwaz.
O sangue de Tsaritsa tecia músculos, órgãos, ossos, veias e artérias, reestruturando-os.
A mão direita deixou o peito, com a esquerda ainda em atrito com o coração sem vida.
Ela retirou a espada do pescoço do menino, e abaixou a cabeça tétrica, mordendo-o com os caninos longos, transformando-o enquanto bebia do sangue morto, encomendando a alma humana de volta conforme, na própria mão induzindo o movimento, o coração retornava a pulsar.
Quando a poeira baixou, diante de milhões de espectadores, Tíwaz havia renascido.
Após retroceder a atrofia corporal, a chanceler pronunciou algo inesperado:
— O que caralhos vocês dois estão fazendo?
Toda a plateia em silêncio, e a chanceler nua, essa foi a última visão antes da transmissão ser cortada.
Tíwaz corou, era a primeira vez que testemunhava tamanha venustidade, e devia a ela a própria existência.
O recém-transformado fez educada mesura, desviando o olhar do corpo asseado, e depois se colocou de joelhos, com a testa contra o chão, em agradecimento.
Durante todo esse tempo, Donatien não conseguia parar de chorar abraçado ao amigo.
Até que a arquibancada reverberou, em comemorações diante da magnificência testemunhada.
