— Nunca se esqueça, Tíwaz. — e essas foram as últimas palavras de Gérraus. — Nenhuma boceta desse mundo vale a companhia de uma mulher, Deus inventou a mentira para as satisfazer.
Tíwaz ainda era criança quando o viu pela última vez.
Desde então, por anos vivendo nas ruas sem destino de cidade em cidade, aprendeu a sobreviver dominando três artes. Numa nova manhã recorria a duas dessas, correr e roubar.
O antes bucólico condado de Vã Guarnidora, no norte do reino de Nova Fronteira, industrializara-se nos últimos anos.
Tinha em seu centro, lado a lado, edifícios rurais e modernos, de janelas arqueadas em andares de tijolos escuros que pareciam repetir-se.
Eram dois os teleféricos principais, um levando ao porto, e outro ao aeródromo, onde os dirigíveis a vapor criavam densas brumas sempiternas.
Essa era a direção dos passos apressados de Tíwaz, acima das lajes, por andaimes, nas reconstruções das fortalezas da estepe.
Entre as chaminés, cheiro de cal, orvalho e fumaça de carvão.
Estátuas de gárgulas, deformadas pelo tempo, observavam como sentinelas enquanto o jovem disparava, subindo e agarrando-se às sacadas e antenas de rádio e televisão, quase despencando.
A escolha do furto fora o escritório de advocacia, dos muitos no centro.
Janela quebrada, parafusos soltos, e depois de vasculhar, o grande prêmio. Quatro relógios de ouro, então na bolsa de couro do menino.
O atrito contra as rochas do novo edifício guiou-o por outra escadaria, dali o garoto alcançou o nível da rua, diante da torre do relógio quebrado, ruínas de antes das inundações da Chuva Eterna.
Num beco enevoado, vultos passaram por ele, guardas de capa e uniforme militar oliva-escuro, com o brasão dos Vallensarnov, as colinas emolduradas por raízes de parreira.
Fingiu confiança e acelerou os passos, mas não foi o suficiente para despistar os homens. O golpe acertou na altura da nuca do menino que perdeu a consciência.
Em castanho-claro, cabelos oleosos e imundos.
Olhos atentos aos movimentos na abadia, onde era improvisada a prisão da cidade.
Corpo franzino, acostumado à falta, e sem conhecimento da fartura. Vestes puídas, e nenhuma delas comprada com prata honesta, das botas gastas aos calções e meias rasgadas, dos suspensórios à manta negra desbotada com capuz.
— Tíwaz?
— Isso.
— Sem sobrenome? — inquiria-o o coronel, desde as primeiras horas da manhã, sempre as mesmas perguntas ganhando respostas cada vez menores:
— É.
— Você não está se ajudando, ainda é garoto, e sabemos que cometeu outros crimes, se os assumir pode ser levado para nossa casa de recuperação. Terá futuro de venturas. — foi dito sem esforço de disfarçar a mentira, como quem tem a presa na certeza de que essa não lhe escapará.
— Eu não roubei nada.
— Nem os relógios na sua bolsa?
— Nada, exceto os relógios.
E assaltou a sapataria, onde só encontrou prata suficiente para três refeições, e as chaves da fazenda dos Awaesdrovna.
O que corroborou com outro crime, esse sem precedentes.
O problema de Tíwaz é que ele não fez parte da atrocidade, ele se quer conhecia os envolvidos.
E nem pensou em possibilidades tão ruins ao, por seis míseras moedas de prata, vender o molho de chaves.
Eram muitos os mendigos do centro, e um deles foi o receptador, e se assumisse isso ninguém acreditaria nele, tanto que resolveu não falar a verdade.
Também compreendia que os guardas da abadia estavam pressionados, e precisavam de respostas.
Não aconteciam muitos crimes no condado, e, um tão incomum, levava as autoridades a ameaçar os funcionários públicos, de demissões a transferências de cargo.
Os guardas culpariam o primeiro suspeito que dissesse a coisa errada.
— E de onde veio? Bem vejo que não é dessa região.
— Sou do mundo.
— Um errante?
— Certamente, uma boa definição.
— E onde esteve na última conjunção de carbúnculo? — que era chamada de noite mais escura. E que era pergunta recorrente. E que também era a data do crime funesto.
— Só, pelas ruas.
— Não é fácil acreditar. Seu álibi é a acídia do inocente.
— As coisas são o que são, meu bom guarda.
— Nem sou seu, nem sou bom.
O vampiro tinha rugas profundas, e olheiras. Era um servo transformado.
Não tinha paz desde a noite do crime, e o telefone tocava de hora em hora até então, fosse na abadia, fosse na casa do coronel.
Acima do peso e com a barba em tom das cãs, não passava credibilidade nem na falta de cordialidade da fala, nem na falsa paciência do tom.
— Podemos te levar até o velho armazém abandonado. — Bórgias acendeu o cachimbo e tragou, ervas de hortelã e cidreira. Ele deu longo tempo para atrair os olhos jovens. — Você pode falar sobre o que sei que sabe. Ou, após o corretivo, pode assumir todos os crimes desde a fundação de Vã Guarnidora. Alguns homens gostam de meninos magros. Não sou desses, mas posso arrumar um, ou mais, famélicos.
As fhaurens queimavam até a morte quando em contato com a luz da estrela Fênix, os vampiros transformados não, ainda assim, preferiam a escuridão.
Tíwaz era alguém que conhecia os maus presságios, noites caliginosas aguardavam-no.
As pessoas da idade dele, com os bons augúrios, deliciavam-se na segunda refeição do dia. Ele não comeria se não roubasse. E era o mesmo há muito tempo.
— Não sei do que está falando.
— Você vai ter um tempo ruim aqui, garoto. Eu vou ser o responsável por isso.
E assim foi.
Após o pôr da Fênix, Tíwaz era levado até a fazenda de caprinos dos Schelfan'yr, à beira-mar.
No celeiro abandonado recebia socos, chutes, e cortes para extração de sangue.
Depois de algumas noites, os guardas antes insistentes pararam de perguntar, apenas se embriagando com o sangue virginal.
Tíwaz sabia, se assumisse algo, por menor que fosse, seria ainda pior. Tinham estuprado duas das jovens, e devorado outras quatro da família dos Awaesdrovna.
Assim ele se calou, de ponta-cabeça, pendurado por correntes.
Fechava os olhos e aguentava, sabia sofrer, quieto, até precisar ser arrastado inconsciente.
Numa madrugada, caído na cela, o menino reconheceu os passos pesados de Bórgias.
— Está mais cedo que de costume.
— Hoje é diferente.
E o rosto de Tíwaz, envolto de desesperança, perdeu cor:
— Vão me matar?
— Era meu desejo, mas você é alguém de sorte.
Ele apático redarguiu:
— Sou muitos, menos esse alguém.
— O conde exige tua presença. — as palavras não fizerem sentido num primeiro momento, e depois, compreendendo as possibilidades desse encontro inesperado, Tíwaz temeu por algo pior que a morte.
