Cherreads

Chapter 4 - Capítulo 4: Fumaça e engrenagens

Um zumbido agudo e forçado ecoou apenas em sua mente. No lugar de pálpebras, linhas de texto em verde-limão inundaram seu campo de visão. O despertar não era biológico, mas um boot de sistema.

Booting Sentinela Kernel v9.7.3...

A cada milissegundo, a consciência retornava com a confirmação de um checksum digital.

[OK] Verificação de integridade da

BIOS: SHA-256 confirmado

[OK] Handshake de entrelaçamento

quântico: 0xA9F2

[..] Inicializando interface neural lace...

Sua percepção do tempo se distorceu, acelerando para acompanhar o preenchimento da barra de progresso:

╔─━━━━━━░ • ━━━━━━─╗

█▒▒▒▒▒▒▒▒▒ 10%

███▒▒▒▒▒▒▒ 30%

█████▒▒▒▒▒ 50%

███████▒▒▒ 70%

█████████▒ 90%

██████████ 100%

╚─━━━━━━░ • ━━━━━━─╝

O ambiente explodiu em foco hiper-real. O sistema de visão dela estava online.

[OK] Overlay HUD retinal: 1920x1080@120Hz

[OK] Driver coclear biônico: latência 0.8ms

[OK] Matriz de sensores olfativos: traço de ozônio detectado (12ppm)

╔─━━━━━━░ • ━━━━━━─╗

Inicialização concluída...

╚─━━━━━━░ • ━━━━━━━─╝

Um HUD (Head-Up Display) transparente e azul-claro estabilizou no canto de sua visão, apresentando seu estado atual:

HUD_BOOT:

┌───────────────────────┐

│ BATERIA: 100% │

│ VITAIS: NOMINAIS │

│ FROTA: DESCONHECIDA │

└───────────────────────┘

Os comandos de memória foram instantaneamente acessados:

MEMORY_DUMP:

DESIGNação: Sentinela

MISSÃO: Vigília Primária

ÚLTIMO_SYNC: [NULL]

A falta de dados vitais de sua tripulação ativou alertas em amarelo piscante:

[ALERTA] Canais de áudio da tripulação: SILÊNCIO

[ALERTA] Suporte de vida: CICLO MÍNIMO

Com um click satisfatório, a liberação pneumática de seu casulo ajetou a Sentinela para o convés.

Liberação pneumática do pod: 0xFF

O metal frio encontrou seus pés. Seu sistema óptico rodou uma análise rápida no corredor à sua frente:

SCAN_CORREDOR:

┌─ANÁLISE_DE_SOMBRAS─────┐

│ • Ponto A: 0.3 lux │

│ • Ponto B: 0.1 lux │

│ • Térmico: anomalia -12°C │

└─────────────────────┘

O primeiro movimento foi medido e otimizado:

STEP_SEQUENCE: 001

> Contato metal nu: 4.2°C

> Otimização de marcha: 97%

Kira estava fora do casulo. Seu propósito era singular e claro.

BOOT_COMPLETE

VIGILIA_MODE: ATIVO

[KIRA 1.7 ONLINE]

Kira abriu os olhos com um sobressalto, mas a visão demorou a focar. Em seu mundo, a luz era filtrada por painéis de LED; ali, ela era amarela, suja e dançava, arremessada por uma fogueira próxima.

​O som era esmagador: não o zumbido branco do cyberware, mas uma cacofonia de chiados, estalidos de madeira e o som distante de metal sendo forjado.

O ar. O ar era denso, quase mastigável. Cheirava a carvão queimado, óleo quente, terra molhada e algo herbal, pungente. Texturas ásperas roçavam sua pele: um cobertor de lã grosseira e a aspereza do colchão de palha sob sua cabeça.

Seu corpo estava pesado, desajustado, como se os implantes de NeuroTech estivessem lutando contra a gravidade orgânica daquele lugar. A mão dela voou instintivamente para a lateral do pescoço, onde o Regulador de Pulso estava instalado. Ele estava zumbindo em ritmo irregular, soltando um vapor fraco e medicamentoso.

Kira tossiu, a garganta seca. Ela tentou acessar seu HUD mental, mas a interface falhou, apenas um ruído branco na beira da consciência. Bloqueio atmosférico? Interferência mecânica?

Ela se sentiu vulnerável, um artefato delicado em um mundo de força bruta.

Com um esforço físico incomum, Kira tentou se sentar, as costas doendo pela rigidez do colchão.

Agachado junto ao braseiro, de costas para ela, Elias mexia um bule de cobre com uma colher de pau. O ar pesado da cabana tinha o aroma terroso de chá de ervas, sobreposto pelo pungente cheiro de óleo e fuligem – o perfume cru do Vale do Vapor.

Ele era um homem alto, de ombros largos. O cabelo e a barba eram grisalhos e emaranhados, conferindo-lhe um ar de patriarca.

"A mocinha acordou," murmurou, sem sequer inclinar a cabeça. A voz era grave, esculpida pelo sotaque rústico dos planaltos.

Kira, finalmente focando nele, notou as mãos grossas, nodosas e calejadas pelo trabalho pesado com ferro e madeira, e os olhos – gentis, mas carregados pelo cansaço de quem já vira muitas estações.

"Onde... onde estamos?"

"Minha casa. Estamos no Vale do Vapor, a rabeira suja de Nova Albion." Ele serviu uma xícara de ferro. "Água de nascente, direto da montanha. O melhor que se pode beber."

Kira pegou o pão, a casca dura granulada sob os dedos. "Vim de muito longe," ela murmurou, a frase morrendo na garganta. "um mundo... Diferente, eu estava fugindo de uma... Divida"

A porta de madeira maciça rangiu, pesada, e Joshua Straem entrou. Suas botas de couro grosso batiam como martelos no assoalho. Trazia roupas de lona manchadas e as mãos envolvidas numa pátina de graxa escura. Óculos de couro estavam pendurados no pescoço; no braço, tatuagens de engrenagens pareciam girar.

"Ó, pai, ela acordou! Eu bem disse que a faísca dela ainda estava acesa." Ele a encarou com a curiosidade de quem vê um espectro mecânico. "Que raio é esse na garganta? Tá soltando fumaça!"

Kira recuou, a mão instintivamente tocando o cilindro metálico liso do estabilizador. "Regulador de pulso. Tive um acidente... em serviço."

Eles trocaram um olhar de curiosidade muda. Elias serviu chá a Joshua, os gestos lentos e intencionais.

"Dívidas têm nome, guria. Quem te caça com tanto fervor?"

Kira hesitou, a visão fixa no vapor fino que se desprendia da bebida. "NeuroTech. Um certo Hiroshi Vex." Ela baixou a voz, tornando-a um quase sussurro: "Ele não é daqui, mas a influência dele chega antes dele. É como um vírus de informação."

Elias bufou, um riso seco que mal escapou. "Vex? nunca ouvi falar, não acho que esse nome tenha algum poder aqui guria. Aqui, quem estabelece a lei é A Fundição." Sentou-se, limpando as mãos no avental de couro gasto. "A Fundição de Metais e Máquinas do Novo Amanhecer."

"Eles controlam o carvão, as patentes, os trens de ferro, os relógios mestres, as bombas d'água, mas dificilmente eles desejam a morte de algum indivíduo"

Kira respirou fundo, o cheiro acre de óleo quente penetrando nos pulmões. "No meu mundo, pensar fora da linha é uma falha capital." Seus dedos traçaram um arabesco de graxa na bancada de madeira. "A NeuroTech não te mata, ela apaga ideias. Eles fazem uma atualização forçada de cérebros."

"Quebra uma máquina? Eles reprogramam sua própria memória."

Joshua assoviou, o martelo suspenso no ar. "Apagam a mente? Uma limpeza no cerebro humano?"

Kira assentiu, a expressão tensa. "Você vira um escravo. Um drone com olhos vazios. Um sorriso corporativo na sua face."

Elias tirou o cachimbo da boca, os olhos ligeiramente arregalados. "Santo céu... Aqui, se você rouba carvão, perde a mão na guilhotina da Fundição. Mas nunca a alma."

Joshua baixou o martelo no bloco de ferro, o som de metal ecoando como um sino fúnebre. "Então o plano deles é te 'resetar'?"

Kira tocou o estabilizador. "Resetar, reescrever, reaproveitar. O ser humano para eles não passa de um bug obsoleto."

O silêncio desceu, quebrado apenas pelo crepitar faminto da forja a distância.

Joshua quebrou o silêncio: "Aqui, nós é que quebramos a máquina para consertá-la."

"Lá, a máquina é que quebra a gente." Disse Kira olhando para Elias, com uma expressão de cansada.

Elias soprou um anel de fumaça perfeito, os olhos fixos em Kira. "Bem-vinda, Faísca, onde a alma tem peso e a engrenagem é de bronze."

Kira fixa os olhos em Joshua

"E como funciona essa tal de fundição?"

"Eles são vitorianos, guria. Tudo é sobre Tradição, Etiqueta, Hierarquia."

"Se quebra a máquina, paga com multa ou trabalho. Se inventa algo melhor, eles compram sua patente, te dão um título."

"Não vão te apagar por ter uma ideia diferente."

Kira olhou pela janela, onde um dirigível de latão subia lentamente no céu cinzento. "Então... eles não são totalitários? Não é uma ditadura digital?"

Elias riu, batendo a mão na mesa. "Não. É uma Monarquia Industrial. Têm Rei, Conselho, e a Rainha-Consorte Lady Elara, que projeta as caldeiras. A Fundição é a coroa que movimenta Albion."

"O espírito punk respira nos becos. Nós sabotamos trilhos, forjamos patentes paralelas." Ele pegou uma chave inglesa. "Eles fingem que não veem... desde que os trens continuem a rodar no horário."

"Você fugiu de um império que te devora por dentro, com a sedução do código. Aqui, o inimigo é visível, tátil."

"E quebrável com uma simples chave inglesa."

Kira ficou em silêncio. No fundo de sua consciência, algo que ela não entendia no núcleo de seu implante, pulsou uma curiosidade fria e elétrica...

EPÍLOGO: NEO-TÓQUIO: A Sombra

NeuroTech em ruínas fumegantes.

No núcleo do complexo, uma criatura negra – sombra líquida, tentáculos de código – pairava sobre Hiroshi Vex, agora um fantoche quebrado. Seus implantes estavam rachados. Pupilas em neon vermelho. O Vírus da Colmeia se espalhava: cidadãos marchavam nas ruas, olhos vermelhos fixos.

Hiroshi abriu um canal criptografado, a voz reverberando com a autoridade de algo não-humano.

"Taka. Localize Kira Voss. Traga-a de volta. Intacta."

Taka assentiu, o cigarro exalando vapor azul. O rifle de plasma repousava ao lado.

As Dimensões Despedaçadas abriam uma ponte. O demônio da NeuroTech queria todas as realidades.

"Kira tem a chave para isso, a conquista começa agora..."

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