A Forja de Elias nunca dormia. O crepitar da lenha misturava-se ao chiado do vapor que escapava de um bule no canto, e o cheiro de chá verde preenchia a oficina.
Kira estava sentada num banco de madeira e cobre gasto, mexendo em seus implantes. Uma caneca de chá verde cheia repousava sobre a mesa, adicionando-se ao aroma que pairava no ar.
Elias martelava uma placa de bronze na bigorna. Cada golpe ecoava como um sino fúnebre.
— Você carrega muita coisa dentro de você, Faísca — diz ele sem desviar o olhar do trabalho.
— Mas essa inquietude também te ilumina por dentro.
Kira deu um sorriso torto. Pela primeira vez em anos, ela sentia que alguém realmente havia sido sincero com ela, e não era apenas mais um sarcasmo estúpido de Neo-Tóquio.
— De onde eu venho, inquietude é só um código para algo muito pior... Um apagão, o fim.
Elias riu baixo.
— Aqui, apagão é quando a forja esfria.
Neste momento, Joshua entrou, carregando um balde de carvão. Seu macacão, sujo de graxa, e suas botas pesadas faziam o chão de madeira ranger.
— Pai, o vapor está subindo. O trem das sete vai passar.
Ele olhou para Kira. — Tem algo que você precisa ver. Acho que isso não existe de onde você veio.
Kira assentiu. Afinal, ela precisava aprender como esse novo mundo funcionava.
Seus implantes falhavam: o HUD piscava "ERRO" a cada cinco minutos, e ela temia que isso pudesse futuramente atrapalhar seus movimentos.
Eles saíram para o pátio. A noite estava pesada de fuligem. No céu, um dirigível de latão e tecido riscava luzes amarelas.
Joshua apontou para um drone de patrulha da fundição, uma esfera de bronze com hélices.
— Funciona — murmurou.
— Analógico é... honesto. Essas coisas passam todo o dia para coletar o nosso trabalho para a Fundição. Se você tiver carvão ou peças de metal, é só deixar com o drone. É assim que ganhamos recursos aqui.
— Você aprende rápido, guria.
De volta à cabana, o chá verde esfriava. Kira sentia algo que não sentia há anos: pertencimento. Elias contava histórias de quando era jovem, sabotando trilhos da Fundação com pregos de bronze, e Kira e Joshua ficavam maravilhados com suas histórias. Kira sentia, finalmente, que havia encontrado seu lar.
Então, a porta rangeu. Não era o vento, mas sim metal sendo forçado. Uma silhueta tornou-se visível na soleira:
— Voss, a hora do recreio acabou.
Aquela voz fez o corpo de Kira arrepiar e entrar em alerta imediato. Era seu ex-parceiro, Taka Nimura, quem a havia traído.
Taka carregava seu rifle Gauss no ombro e uma katana de plasma na outra mão. Seus olhos roxos brilhavam sob a luz da forja.
— Ordens do Fragmento, Voss — disse, com a voz grave e distorcida. — Volte. Ou levo sua cabeça; não faz diferença para mim.
Elias se colocou na frente de Kira.
— Você não vai tocar nela.
Taka deu um sorriso quase psicótico.
— Velho, saia da...
Antes que Taka terminasse a frase, Elias agiu. Puxou uma arma — uma espingarda a vapor feita sob medida. O cartucho explodiu com um hiss potente, lançando uma rajada de vapor pressurizado e fragmentos de metal.
O tiro atingiu Taka em cheio no peito. Ele foi arremessado para trás, batendo com violência na soleira. Elias gritou:
— CORRAM!
Joshua e Kira dispararam para fora da casa, com Elias logo atrás deles.
— Vamos sair daqui antes que...
Kira mal conseguiu terminar a frase. Taka, mesmo ferido e atordoado pelo impacto, tinha a velocidade e a fúria de um animal caçando. Ele se ergueu, lançando sua adaga de arremesso com uma precisão brutal.
Não houve silêncio; houve apenas um som agudo de metal cortando o ar, seguido por um som grotesco de lâmina rasgando a carne. Elias, que corria à frente, estacou. Ele caiu de joelhos, o cabo da adaga sobressaindo de suas costas enquanto o sangue escorria de sua boca. Taka havia sido mais rápido.
Em desespero, Joshua correu até seu pai e o segurou.
— Pai, não! Me escuta! Eu vou dar um jeito. — Seus olhos se enchiam de lágrimas enquanto Taka, lentamente, caminhava até Kira, que permanecia em silêncio, de cabeça baixa.
— Kira Voss, a maior rastreadora de rede de Neo-Tóquio... Sem tecnologia, você não é nada.
Taka, então, mirou a lâmina da katana no pescoço de Kira e fez um movimento. Kira, porém, ativou rapidamente um de seus implantes: uma lâmina escondida em seu braço que defendeu o ataque de Taka. Imediatamente, ela desferiu um soco no rosto dele, fazendo-o cambalear para trás.
— Essa é a segunda vez que você vacila comigo, Taka. Desta vez... eu vou matar você.
Algo mudou em Kira: seus olhos, antes azuis, agora estavam roxos, e seus movimentos, mais rápidos.
Algo havia despertado nela.
Com um rápido movimento, Kira desferiu vários cortes contra Taka, que os defendeu a todos.
— Kira, você sempre foi como uma... — Taka foi interrompido, pois foi acertado de raspão no rosto.
Taka levou a mão ao ferimento no rosto, o choque substituído por uma fúria ardente. Ele não estava acostumado a sangrar.
— Você me arranhou, sua... lata velha! — Ele ergueu a katana de plasma, o fio crepitando alto o suficiente para abafar o choro de Joshua.
Em um arco devastador, o plasma desceu. Kira desviou, o calor da lâmina chamuscando seu cabelo. Ela usava sua agilidade máxima, correndo e saltando pelos destroços da forja, tentando desesperadamente encontrar uma brecha na guarda furiosa de Taka. O espaço ali era pequeno demais, e o plasma era grande demais.
Kira pulou para trás, mas não a tempo. O plasma atingiu o metal da forja com um ruído explosivo e cegante. O calor irradiou, chamuscando o cabelo de Kira e forçando-a a cambalear.
Ela usava sua agilidade máxima, correndo e saltando pelos destroços fumegantes da forja. Era uma dança desesperada. O espaço ali era pequeno demais, e o plasma era grande demais. Kira precisava de uma abertura.
Ela correu em zigue-zague, desviando dos golpes amplos de Taka, que continuava a pulverizar o chão e as paredes metálicas. A cada desvio, ela se aproximava mais da forja.
Taka, cego pela raiva, notou a intenção. — Você não vai escapar por aqui, rata de rede! — Ele preparou um golpe final, mirando para esmagar Kira contra a forja.
No instante em que Taka avançou, Kira desviou para lado com um salto distante, fazendo a espada dele acertar a forja. Os olhos de Taka se contraíram momentaneamente por conta do calor e das brasas. Foi apenas um instante de desorientação, uma sobrecarga sensorial para seus olhos cibernéticos.
Foi o suficiente.
O golpe devastador de plasma de Taka, originalmente destinado a esmagá-la, passou raspando um centímetro à direita do ombro de Kira. Sua mira, por uma fração de segundo, estava distorcida.
A brecha.
Kira não pensou. Ela girou o corpo, aproveitando o impulso do golpe errado de Taka. Sua Lâmina Oculta, agora uma extensão de sua própria vontade, cortou o ar numa trajetória perfeita.
O plasma crepitou. O metal da lâmina de Kira colidiu com a articulação do cotovelo do braço que segurava a katana, dividindo o implante cibernético e o músculo orgânico com um som asqueroso de rasgo e estalo elétrico.
A katana de plasma, sem suporte, caiu no chão com um baque, o plasma se dissipando em um chiado de faíscas, iluminando o sangue que começou a escorrer do cotovelo de Taka, misturado com óleos e fios elétricos expostos.
Taka soltou um grito de pura agonia e choque. Ele se ajoelhou, segurando o braço mutilado que agora terminava em um emaranhado fumegante.
— Meu... braço... — A fúria dele foi substituída por um terror gélido.
Kira, com os olhos roxos ainda queimando, parou a centímetros dele, a lâmina apontada para a garganta de Taka. Ela estava ofegante, mas não havia misericórdia em seu olhar.
— Sem tecnologia, você não é nada, Taka. Eu disse que te mataria.
Kira não precisava de mais palavras. Ela apertou o punho, a lâmina oculta pronta para o golpe final, quando o som de algo muito mais primitivo e estrondoso rasgou o ar.
BANG!!
Uma bala de bronze entrou pelo lado da nuca de Taka. A fumaça, densa e oleosa, subiu, revelando a silhueta de Joshua, que segurava um rifle de madeira e bronze a vapor de seu pai.
Os olhos de Joshua, ainda inchados de lágrimas, estavam frios e firmes.
— Ele matou meu pai.
Kira, então, desabou. Seus olhos roxos retornaram ao azul natural enquanto ela se ajoelhava diante de Elias. Em Neo-Tóquio, a morte era uma rotina fria, mas por que, ela se perguntava, essa dor era tão intensa? Era maior do que ser perfurada por uma bala de plasma.
Ela tocou o rosto de Elias suavemente, sentindo a pele endurecida do ferreiro.
— E-eu estava... E-eu... isso é tudo culpa minha. Eu não...
Joshua limpou as lágrimas restantes, colocando a mão sob o ombro de Kira.
— Ele sabia. Ele sempre soube do perigo, e mesmo assim acolheu você. Não é culpa sua, Kira.
Sob a luz crepuscular que entrava pelas aberturas da forja, eles se moveram em um silêncio pesado. O corpo mutilado de Taka foi arrastado com esforço para o interior da oficina, longe dos olhos curiosos. Joshua deu um último olhar para os implantes expostos, sabendo que aquelas peças seriam úteis mais tarde. Em seguida, com uma reverência mecânica, prepararam Elias. Joshua abriu a porta principal da forja — o coração de bronze e fogo — e o calor que saiu não era amigável, mas sim voraz. Kira observava enquanto as chamas lambiam o ar, transformando o lugar que ele amava em sua pira funerária.
Ela nunca tinha visto a morte honrada assim. Em Neo-Tóquio, os corpos eram descartados, reduzidos a dados. Aqui, havia calor, cheiro de metal queimado e fumaça de madeira. Era final, mas não era frio. Joshua pegou um pedaço de bronze polido, um artefato inacabado de Elias, e atirou-o nas chamas, onde se fundiu e desapareceu. O calor final do bronze e da lenha subiu ao céu como a última respiração de Elias, misturando-se à fuligem da noite. Eles ficaram ali, lado a lado, enquanto o rugido da forja consumia o corpo de seu mestre. A forja, por fim, esfriaria. Mas o calor que ele havia deixado em Kira... esse não iria se apagar.
