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Chapter 10 - TÍWAZ

O dia foi dividido em quatro partes.

Primeira parte, conceitos básicos de luta para Tíwaz. 

Ele não possuía proficiência com nenhuma arma. 

Falta que gerava treinos de postura com lanças, espadas e machados variados, buscando o que melhor condissesse com os reflexos dele. 

Depois, meditação, precisava sentir a própria aura, e a controlar para moldar a si mesmo, essa era a transfiguração, o primeiro passo em qualquer maldição vampírica, a busca pelo verdadeiro aspecto físico, todavia, Tíwaz não tinha avanço, e ainda não diferia de comum humano. 

Moeg'Tullam ensinara que toda fhauren e humano resguarda dentro de si, dormente, oculta maldição sanguínea. 

Essa, no caso dos humanos, poderia, ou não, ser substituída por outra, ao ser mordido e transformado em vampiro. 

Logo, não era possível outro, diferente do próprio vampiro, desvendar os passos de dois até sete da maldição que o imortalizara. 

Todos os poderes eram fantásticos, e secretos, e foram aconselhados a não revelarem nem mesmo entre si. 

Eram dezesseis as maldições conhecidas, em geral, nomeadas como o território de tal incidência sanguínea. 

Os novos poderes seriam aprendidos por Sussurros Funestos, que se tornariam mais e mais comuns durante as noites. Chamados da escuridão. 

O avançar nos passos da maldição refletiria no perder da efemeridade, o que para alguns levava anos, e para outros décadas, ou até séculos. Seria o fim da visão, tato, paladar, olfato, sono, audição, fome, dor, de tudo o que os fazia mortais. 

No lugar dos sentidos, a aura de toda a natureza seria percebida como uma só. 

Yorranna treinava os golpes que conhecia, e alterava-os segundo as indicações da mestra. 

Depois das suadas primeiras horas, as fhaurens banhavam-se nos lagos e lagoas superiores, e o dolorido e frustrado Tíwaz permanecia nas águas baixas. 

Segunda parte, leitura para Tíwaz. 

As Crônicas das Três Quedas, que era conhecimento comum aos nobres desde a infância. Poemas épicos com a história e os mitos de Alcáçova, ou, em fháurico, Ea. 

Tudo lido em linguagem unificada, o que significava questões ininterruptas sobre o significado dos complexos hieróglifos. 

Voltava-se Yorranna para a meditação e as transfigurações corporais. Tíwaz percebia a diferença incomensurável entre os músculos na duo, e aquele aspecto abominável da chanceler transformada, em teoria era o mesmo poder vampírico, idêntico ao que ele também possuía no primeiro passo. 

O liberar de aura por extensos períodos a exauria, ao ponto da duo usar toda a própria reserva de aura e ser repreendida em todos os primeiros dias de treinamento. 

Sem aura, o vampiro ficava incapaz de usar qualquer poder, e, para regenerar o estoque novamente, eram necessárias noventa e nove horas, três dias e três noites. 

Obviamente, existia outra opção, o sangue fháurico ou humano, o que acelerava o perder dos sentidos humanos, e, com o passar do tempo, seria como drogas alquímicas, viciante, e, para o mesmo resultado, doses maiores seriam exigidas. 

De taça de cristal com o sangue de Moeg'Tullam bebiam, uma vez por dia, um gole de cada vez, um gole para cada um, com mais sede do que admitiam, sem nenhuma repulsa esperada. 

Terceira parte, filosofia. 

Ambos eram obrigados a escrever dissertações sobre o que a mestra discursava. 

Os longuíssimos monólogos estendiam-se até o entardecer. 

No nono dia de treinamentos, doutrinou Moeg'Tullam:

— O homem fraco é controlado por duas forças primordiais. Ódio e amor. De forma objetiva, essas duas forças não se distinguem quando em movimento. Imagine uma linha, numa ponta há o amor, mas na mesma linha há o ódio, na ponta oposta. Por vezes, seu sentimento transita de uma ponta à outra no mesmo dia. Por vezes, no mesmo minuto. Esse é o controle do estado sobre o homem. O rei cria a moral e os costumes, o motivo? Controle. O homem com casa, esposa, e filho, é o homem que mataria por essa casa, por essa esposa, e por esse filho. O homem imoral e sem os ditos bons costumes, pensaria em si mesmo antes de matar por qualquer rei, e, aquele que só pensa em si mesmo, só é controlado por si mesmo. Por outro lado, o homem que odeia uma casa, que odeia a uma mulher, que odeia um filho, e, sobretudo, que odeia a si mesmo, é também controlado, por desejos, por instintos, pela natureza. E por que ambos são permitidos pelo rei, e muitos são os crimes cotidianos? A resposta é simples. Ambos, o que ama e o que odeia, são opostos, contudo, estão na mesma linha, e são iguais quando em movimento, controlados. 

— Não entendi. — essa frase, durante as aulas de filosofia, pertencia normalmente a Tíwaz, no entanto, nesse princípio de entardecer foi Yorranna quem não soube como começar a dissertação. — Você está dizendo para não amar? E para não odiar? 

— Se é o que compreendeu, escreva sobre isso. — a mestra deitava num dos rasos fios d'água, fumando longo cachimbo, com ervas de verbasco e folhas de framboesa, observando as nuvens carmesins, tendo o uniforme encharcado. 

— Não. Eu quero entender o que você disse. 

— Por que? 

— Porque é o certo. 

— E o que é o certo? 

— Eu não sei. 

— Eu sei. — garantiu a mestra. — É isso que estou ensinando. O certo muda de lugar segundo a vontade de quem governa, por isso não devemos ser controlados. E como ser livre? 

— Como? 

— Como? — fez eco Tíwaz a Yorranna. 

— Não aceitando nenhum dos dois caminhos que lhes serão ofertados. Esses são, o caminho do amor e o caminho do ódio. Dê a um escravo faminto o que amar ou odiar, e ele se importará mais com dividir as migalhas, ou escondê-las, que com a guerra para encerrar a fome. O homem que recusa os dois caminhos, e encontra o equilíbrio, pode, se honesto consigo mesmo e não a outrem, usufruir do livre arbítrio. Nem amará a tudo, nem odiará a tudo. Será arbitrário em todas as questões, pois não há certo ou errado, verdade ou mentira. E encontrar o melhor a si mesmo é o segredo de toda liberdade. 

Yorranna inquiriu a mestra:

— Vale só para homens, ou para fhaurens também? 

— Para todo aquele que vive e pensa. Certo dia vosso governante chegará a você e dirá, viva pela vingança, lute pelo patriotismo, ou, mate pela verdade, morra pelo amor, nesse dia, vocês arbitrarão. A lógica desse soberano será o que ele leu, o senso comum que aprendeu na infância, e as leis de seus iguais. Essa será a verdade que ele conhecerá. Nesse dia será lógico o crime e não a justiça, pois a lei do homem favorece o homem que criou a lei, e não quem esse vê como inimigo. Nesse dia, se sua moral for fixa e não arbitrável, você será imoral, pois ao seu redor todos serão imorais, e isso será o normal, por isso é necessário pensar, arbitrar, sobre todas as coisas. 

E dispuseram-se a escrever as dissertações. 

A quarta parte do dia era o descanso. 

E retornava o duo junto, num teleférico. 

Fios metálicos tensionados entre distâncias, esticados de estação em estação. 

Ao longo desses cabos deslizavam cabines para dois ocupantes, pequenas cápsulas de vidro e aço enferrujado.

Cada cabine balançava suavemente. Seus vidros, opacos, permitiam que os viajantes entrevissem as ruínas. 

Com cabos lado a lado, outros estudantes seguiam em cabines na direção oposta. 

Frestas de luz noturna surgiam espaçadas por rachaduras no solo, mas a maior parte da viagem era feita na escuridão. 

Eles desciam na quarta das velhas estações, após trocarem de cabine em cada uma das outras paradas. 

Metálica, a escadaria rubra os levava de volta à superfície. 

E separavam-se na bifurcação entre os carvalhos, nas primeiras horas do anoitecer, quando o sono desaparecia. 

Desde o renascimento, Tíwaz só dormiu outras duas vezes, e desde que provara do sangue de Moeg'Tullam ainda não retornara aos sonhos. 

Dali, Yorranna, que nem se lembrava da última vez que dormira, tinha a própria rotina, essa, que Tíwaz desconhecia. 

E ele ao retornar ao conforto dedicava-se à leitura e à escrita. 

Depois deitava, extenuado, permanecendo imóvel na cama por horas, pensando no que aprendeu durante o dia. 

Naquela noite em centro ele sentiu a outra aura no quarto. 

A janela quebrada, pregada com tábuas desde a invasão de Bollomixiana, tinha grandes frestas. 

Preparou-se para o pior, talvez algum animal, talvez roubo? 

A pressão na cama pôde ser sentida enquanto os músculos do garoto tornaram-se como aço. 

Dessa vez a concentração dele não se desfez. 

As falas sobre sentir a aura, a deixar fluir, voltavam conforme o corpo pesava abaixo dos lençóis. 

Os nobres começavam a controlar a aura aos quatro anos de idade, auxiliados com alquimias de sangue é verdade, ainda assim, aos quatro anos. 

Isso irritava Tíwaz, e quando ele se sentiu envolvido com o mundo virou, preparado para a batalha. E viu pés. 

Depois desceu o olhar até a fhauren deitada no oposto. 

A invasão de Yorranna o fez pensar em como agir, contudo, o esvair da aura cansou-o tanto que só se virou novamente e adormeceu, foi a última vez que Tíwaz sonhou em toda a vida. 

Nesse sonho ele viu cinzas, que desciam do céu como neve. 

— Não vai dizer nada? — com a luz vermelha, filtrada pelos poderes brumais, passando pelas frestas da janela quebrada, ela iniciou o diálogo. — Façamos um acordo. Eu fico aqui, e ensino-te sobre a nobreza. Em breve começarão as soirées, e você precisará saber se portar. 

— O que aconteceu para motivar essa nova visita? — ele apreciava a companhia, apesar de não conseguir a olhar diretamente. — Posso fazer comida se quiser. Têm alguns livros de receita na biblioteca, aprendi vários pratos de Furna Óssea. 

— Você é do reino de Furna Óssea? 

— Não, nunca estive nem próximo. Acho que os livros desse chalé eram de um cozinheiro de lá. Tenho lido de tudo atualmente. 

— Pode ser. — ela iniciou a fala desdenhosa e terminou implorando. — Se tiver alguma sobra de ontem eu também aceito. 

— Vou preparar algo. Mas, não acho que é boa ideia você passar a noite aqui. Podem descobrir. E, até explicarmos tudo, seríamos acusados de sacrilégio. E você já está numa situação ruim. 

— Não quer que eu fique? 

— Não é isso, vão espalhar maldades. Aquele que é desgraçado tende a procurar por piores, para que se sinta melhor consigo mesmo sem precisar se esforçar para mudar. Quando não encontra, esforça-se para espalhar o que guarda no próprio coração, a podridão que degenera. 

— Já mentem sobre meu nome, e inventam todo tipo de devassidão, não tem como piorar. 

— Onisciente, sabe quando tudo acontecerá. Onipresente, é estuprado e estuprador, imoral, ainda punhetando ao longe, ignorando os gritos por socorro. E, onipotente, cada terror é planejado previamente, e executado perfeitamente como desejado por esse maldito ser. Sempre tem como piorar, nada é mais sádico que Deus. 

— Não se preocupa comigo… — ela levantou surpresa, sentando na cama. Usava o négligé dourado, semitransparente. Observou-a Tíwaz, desviando o olhar depois de perceber que a fhauren estava sem nada por baixo da seda. Ouvindo-a, apreciou o eflúvio de ameixas brancas. — Você ativou sua aura! A pele ficou mais rígida encarando-me, já aprendeu a controlar o primeiro passo assim tão veloz? 

Certamente havia algo duro ali.

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