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Chapter 2 - Capítulo 1 — O Menino e a Guerra

O vento do norte sempre trazia o cheiro do ferro.

Nos Dezoito Ducados, o nascer do sol não era bênção — era aviso. Quando o horizonte se tingia de vermelho, todos sabiam que o sangue logo o acompanharia.

Foi nesse solo endurecido pela guerra que Lucius Caelum nasceu. Um vilarejo sem nome, entre montes de pedra e rios rasos, esquecido até pelos mapas.

Seu pai, Aren Caelum, era ferreiro. Dizia que o som do martelo era mais honesto que o som dos sinos da nobreza. Sua mãe, Liriel, era curandeira, e acreditava que até mesmo o fogo podia curar, se usado com sabedoria.

Lucius cresceu entre o calor da forja e o perfume das ervas.Ele gostava de observar o fogo — havia algo ali que o fascinava. O pai dizia que o fogo devorava o metal para torná-lo mais forte. Lucius, aos seis anos, sorria como quem entendia mais do que devia.

"Tudo que queima… muda." — costumava dizer, olhando para o brilho das brasas.

As colinas do norte viviam em guerra. Nobres disputavam terras, fé, glória — ou simplesmente o direito de existir. Os rumores de um novo conflito chegaram cedo demais.

Naquela primavera, o Duque de Valen rompeu o tratado com o Duque de Marren, e os dois exércitos marcharam um contra o outro. O vilarejo de Lucius ficava bem entre eles.

O mensageiro chegou coberto de poeira e medo.— "Eles vêm… o vale está perdido."

Aren olhou para a esposa com um olhar que dizia tudo.— "Se eles chegarem aqui, leve Lucius e fuja. Corra para o bosque. Não olhe para trás."

Liriel segurou o rosto do marido, sem palavras.

Quando o crepúsculo caiu, o rugido dos tambores ecoou nas montanhas.O céu noturno brilhou em tons de laranja — não por estrelas, mas por chamas.

Aren mandou Lucius se esconder nos fundos da casa. O menino obedeceu, mas seu olhar permanecia calmo, curioso.

O primeiro choque de espadas veio como trovão.O ferreiro lutou como um homem que defendia algo mais precioso que a própria vida.

Ele não era guerreiro, mas conhecia o peso do metal.

Um soldado inimigo irrompeu pelas chamas — armadura escura, lâmina manchada de sangue. O duelo foi breve, brutal.

O martelo de Aren esmagou o elmo do invasor, mas a espada do homem atravessou suas costelas.Ambos tombaram.

O fogo rugiu.

Quando o silêncio chegou, Lucius saiu do esconderijo.

O vilarejo era um cemitério de fumaça e brasas.Ele caminhou entre corpos e destroços até encontrar os dois — o pai e o inimigo — deitados lado a lado, como duas sombras.

Os olhos de Aren estavam abertos, mirando o céu. Havia paz em seu rosto.

Lucius ajoelhou-se.— "Pai?" — chamou, a voz trêmula. Nenhuma resposta.

Ele pousou a mão sobre o peito do pai… frio. Depois, olhou para o soldado inimigo.

O corpo ainda exalava calor, mas a vida já havia partido.E então, Lucius viu.

Uma névoa pálida flutuava sobre o cadáver — tênue, vacilante, como fumaça ao vento.

Algo em seu coração reagiu. Um chamado mudo.

Ele estendeu a mão, curioso. A névoa tocou sua pele — e, no instante seguinte, o mundo se desfez.

Dentro de Lucius, algo se abriu.

Um vasto espaço, negro e silencioso, como o interior de uma estrela morta.Fragmentos de luz e sombra flutuavam sem ordem, e no centro, uma única chama — sua alma.

E então, uma voz interior ecoou:

— Espaço Espiritual... desperto.

Lucius viu a névoa — a alma do soldado — ser atraída para dentro daquele espaço. Ela se contorceu, resistiu… e depois se acalmou. As memórias caóticas, o ódio, o medo — tudo se dissolveu.

O que restou foi compreensão:O peso de uma espada. O fluxo da energia no corpo. A disciplina do combate.

Ele entendeu.

— "Então é isso… é isso que move os homens." — murmurou.

Quando abriu os olhos, o fogo refletia em suas pupilas douradas.

O corpo do pai jazia imóvel ao lado, mas Lucius não chorou.O choro era para quem não compreendia.

Ele olhou para as chamas e sussurrou:— "Tudo que queima… muda."

O vento soprou. Cinzas se ergueram como almas libertas.

E no coração daquele menino, nas ruínas de um vilarejo esquecido, nasceu o primeiro Devora-Almas — não um predador, mas um guardião das memórias perdidas.

O cheiro de ferro e fumaça dominava o ar.Lucius avançava entre as ruínas do vilarejo, os pés descalços pisando em cinzas quentes. O sol estava nascendo, mas a luz não trazia esperança — apenas revelava a extensão do massacre.

Ele ainda sentia o eco da alma que havia absorvido. O soldado, um homem comum, guerreiro de um ducado distante. A essência purificada dormia agora dentro de seu espaço espiritual, silenciosa, como uma vela acesa em meio à escuridão.Mas algo havia mudado dentro dele. A alma parecia… mais firme. Mais desperta.

Um estalo metálico soou próximo. Lucius se abaixou instintivamente atrás de uma carroça queimada.Passos. Vozes abafadas.Soldados inimigos vasculhavam entre os escombros, caçando sobreviventes.

"Nenhum deve escapar", ouviu um dizer."O duque ordenou. Todos os traidores devem morrer."

Lucius segurou o fôlego. Ele sabia que, se fosse pego, não haveria misericórdia.O instinto o guiava — e também algo mais.Como se o conhecimento recém-adquirido sussurrasse dentro dele: "Pense como um guerreiro. Respire como um predador. Não seja visto."

Ele se moveu em silêncio, rastejando até uma parede semi destruída. Quando ergueu o olhar, viu algo que o fez parar.

Um homem de manto negro jazia entre as pedras.Um símbolo estranho, gravado em sangue, ainda brilhava fraco sob o peito.Lucius reconheceu o padrão do círculo mágico — uma runa do Elemento das Sombras.

O corpo exalava um frio diferente da morte comum. Era denso, quase vivo.E quando Lucius se aproximou, sentiu novamente aquele chamado silencioso — o eco de uma alma se desprendendo.

Por instinto, ele estendeu a mão.

O mundo ao redor pareceu parar. O ar ficou pesado, o som distante.E então, como um rio sombrio fluindo para dentro de um abismo, a alma do mago sombrio foi tragada pelo espaço espiritual.

Diferente da alma do soldado, essa ardia.Ela se retorcia, cheia de fragmentos, segredos, memórias quebradas.Lucius respirou fundo e, em sua mente, algo se abriu: um labirinto de fórmulas, gestos arcanos, princípios de canalização e controle.Era como se mil livros fossem queimados e seus conteúdos lançados dentro de sua alma.

"A escuridão não é o mal.""Ela é apenas o que resta quando a luz se esvai."

A voz do mago morto ecoou brevemente antes de desaparecer.

Lucius abriu os olhos.O corpo diante dele agora estava vazio.E ele compreendeu. A alma humana era um universo. E o dele, pela segunda vez, havia expandido.

Mas não havia tempo para reflexões.Gritos distantes e o som de cascos ecoaram na estrada principal.Lucius se ergueu e correu, guiado pelo instinto recém desperto — movendo-se nas sombras como se sempre tivesse pertencido a elas.

Ele se escondeu atrás de um muro e ali ouviu algo. Um soluço.Fraco.Infantil.

Empurrou um pedaço de madeira e encontrou uma menina.Suja, magra, com os olhos vazios de quem já vira mais do que deveria.Seu cabelo estava grudado pela fuligem, e o corpo tremia não de frio, mas de medo.

Lucius se abaixou.— Ei... está tudo bem. Eles já foram — mentiu, com voz baixa.

Os olhos da menina se levantaram lentamente, observando-o.Ela não respondeu de imediato. Apenas o encarou, como se tentasse decidir se ele era real.Por um momento, o silêncio foi absoluto.

— Qual é o seu nome? — perguntou Lucius.

Ela piscou.— Friaren. — Sua voz era rouca, mas suave.— Você... é daqui? — insistiu ele.— Era — respondeu, desviando o olhar. — Agora... acho que ninguém é.

Lucius engoliu seco.Viu nas mãos dela marcas de queimadura, e em seus olhos, uma calma estranha — fria, distante.Ela falava como alguém muito mais velha.

— Quantos anos você tem?— Dez, acho. — Ela deu de ombros. — Você parece mais novo.— Tenho seis.

Ela franziu o cenho, surpresa.— Seis? Mas... você parece mais velho.Lucius sorriu de leve.— Talvez seja a fumaça. Ela envelhece a gente.

Um ruído distante fez os dois se virarem.Mais soldados.Lucius estendeu a mão para ela, decidido.

— Vamos sair daqui.— Para onde? — perguntou Friaren, sem emoção.— Não sei. Mas sei que ficar é morrer. E eu ainda não quero morrer. Você quer?

Ela o observou longamente. Então, devagar, segurou a mão dele.— Não quero morrer — disse, simplesmente.

E assim fugiram.

Horas depois, o sol já alto, alcançaram a orla da floresta.A guerra ainda rugia atrás deles, mas as árvores os acolheram em silêncio.Lucius parou diante da mata escura.O ar ali era diferente — úmido, vivo, cheio de energia elemental.

Ele podia sentir os fluxos dos sete elementos dançando ao redor, como fios invisíveis entrelaçados.O espaço espiritual dentro dele vibrava levemente, como se reconhecesse aquele lugar.

Friaren, exausta, encostou-se em uma árvore.— Vamos morrer de fome aqui — disse, olhando para o chão.Lucius olhou para ela e respondeu com uma calma que não parecia de uma criança:— Talvez. Mas se morrermos, será tentando viver.

Ela arqueou uma sobrancelha.— Você fala estranho.— Dizem que falar é pensar alto. E eu penso demais.

Friaren soltou um suspiro breve — algo entre cansaço e riso.Foi o primeiro sinal de humanidade que Lucius viu nela.

Ele olhou para o horizonte — as colunas de fumaça ainda subindo onde ficava o vilarejo — e murmurou para si:— Os humanos dizem que somos fracos.Fechou os olhos.— Mas talvez sejamos apenas... inacabados.

Friaren o observou, em silêncio.E, sem saber por quê, ficou.

Naquela noite, sob o luar filtrado pelas folhas, Lucius concentrou-se em sua alma.Dentro dela, duas essências brilhavam — uma serena e simples, a do soldado; outra densa e misteriosa, a do mago sombrio.Ambas dormiam em paz.

Ele entendeu algo então: as almas não são devoradas; são compreendidas.E esse poder, se usado com sabedoria, não o tornaria um monstro — mas um guardião.

Ao seu lado, Friaren dormia, o rosto finalmente sereno.Lucius fechou os olhos.A primeira noite do resto de sua nova vida começava.E nas profundezas de sua alma, o Espaço Espiritual pulsou suavemente — como se aprovasse sua decisão.

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