— E o senhor… em que categoria se encaixava? — perguntou Kenji, ainda curioso.
— Antes de me aposentar eu era categoria S. Hoje em dia, se muito, chego na C — respondeu Tomoji, soltando um leve suspiro.
Kenji abaixou os olhos, pensou por um momento e, hesitante, soltou:
— Mas… naquela noite na fábrica… quem fez aquilo tudo? Foi o senhor?
Tomoji ficou em silêncio por alguns segundos, desviou o olhar como quem escolhe bem as palavras.
— Não Kenji. Aquilo foi você.
Kenji arregalou os olhos e se sentou bruscamente na cama, puxando os lençóis como se precisasse de algo firme pra segurar.
— O quê…? Como assim… eu?! — a respiração acelerou. — Tá dizendo que… aquele poder… saiu de mim?
Tomoji assentiu com calma.
— Saiu. Foi você Kenji. Talvez não tenha sido consciente, mas foi seu corpo, sua aura… sua essência que respondeu naquele momento.
— N-não… isso não faz sentido… Eu nunca… — Kenji se levantou, mesmo com o corpo dolorido, e cambaleou. — Eu nem sabia que tinha poder algum! Como isso pode ser meu?!
— Porque tava dormindo dentro de você. E algo naquele instante — talvez medo, talvez raiva, ou o instinto de proteger — abriu a porta.
Kenji levou a mão ao peito. Um ardor sutil percorreu o coração como brasa acordando, e o colar de cristal pareceu aquecer por dentro.
— Mas eu… matei pessoas Tomoji. Eu… nem lembro. Apaguei, e quando voltei… tava tudo destruído!
— Sim. Você perdeu o controle. Mas também salvou vidas. E isso importa.
— Isso não muda o que eu fiz! — gritou Kenji. Depois apertou os olhos e respirou fundo. — Desculpa… Eu só… não entendo o que tá acontecendo comigo…
Tomoji se aproximou devagar, expressão firme e serena.
— E é por isso que você precisa descobrir. Se não entender esse poder, ele vai te engolir inteiro. Vai transformar culpa em raiva… e te arrastar por um caminho sem volta.
Kenji sentou de novo, desta vez devagar, como se a força tivesse saído do corpo.
— Esse poder… tem alguma ligação com a minha família?
— Talvez. Ou com a guerra. O que eu sei é que ele é antigo. E forte.
Kenji olhou pro teto, tentando absorver.
— Então… eu sou… um monstro?
— Não. Você é um garoto com um dom que ainda não compreende. E isso é diferente.
Ryota falou num tom de alerta:
— Ei, se acalma. Nada do que você fez dava pra mudar a situação.
— Dava sim! — retrucou Kenji, exaltado. — Como pode saber do que eu sou capaz se nunca testamos minha força?
Houve um silêncio curto. Então Ryota disse:
— Você tem razão, mas não adianta se desesperar. Promete que não vai fazer nada imprudente, ok? Promete que não vai se meter em confusão?
Kenji hesitou. O olhar vacilou. Ele recuou um passo, como se a promessa pesasse mais do que queria carregar. Baixou o rosto e respondeu, baixo e contido:
— Tá bom… eu prometo…
— Beleza. Vou ver o que posso fazer pra te ajudar a treinar — disse Ryota, meio desanimado, mas com uma faísca de esperança.
— Sério?
— Sim. Mas nada de confusão até eu ter novidade, beleza?
Os dois riram, meio nervosos. Depois que Ryota deixou o hospital, Tomoji chamou Kenji para uma última palavra.
— Quer você lembre ou não, foi graças a esse poder que estamos vivos hoje — disse Tomoji, sério.
— Eu… eu nunca quis matar ninguém. Sempre quis proteger as pessoas — murmurou Kenji, quase chorando.
— Então treina. Aprende a controlar seu poder antes que ele te controle. Lembra do que eu disse: não tem problema a gente se sentir fraco, mas quando alguém que a gente ama tá em perigo… é aí que descobre a força. Faz isso pela sua irmã.
— Valeu senhor Tomoji.
— Não precisa agradecer seu idiota. Agora descansa. Logo, logo você recebe alta.
No fundo, o velho pensou: (Kenji, você é uma boa pessoa. O caminho vai ser difícil… mas eu acredito em você.)
Algum tempo depois, um ruído chamou atenção de Tomoji. Ele virou com dificuldade e viu Kenji no chão, fazendo flexões, o rosto vermelho, o corpo ainda coberto de faixas.
— O que é que você tá fazendo seu maluco?! Seu corpo tá cheio de ferimentos, você tá cuspindo sangue! Se continuar assim eu te jogo pela janela, seu suicida!
— Me desculpa! Eu tava exausto e achei que… se forçasse, meu poder ia despertar! Por favor, me desculpa!
— Até faz sentido… mas não exagera, seu idiota — resmungou Tomoji, franzindo a testa.
Três dias depois, Kenji recebeu alta. Na saída, vestindo uma blusa leve e com a mochila nas costas, perguntou:
— Senhor Tomoji… hoje é o dia, né? Vão me liberar agora. E o senhor sai amanhã?
— É. Não vejo a hora de voltar pro ferro-velho — respondeu Tomoji com meio sorriso. — E você… vai atrás do tal treinamento?
— Vou. Quero despertar meu poder. Não vejo a hora do senhor me treinar!
— Você é idiota?
— Hã…? Por quê?
— Quando foi que eu disse que ia te treinar? Eu tenho quase cem anos, rapaz… o que eu posso te ensinar? Você precisa encontrar alguém que te guie. Vai tropeçar, apanhar, mas vai aprender.
Ele respirou, ajeitou as faixas e concluiu:
— E, se persistir, vai conhecer gente bacana. E eu sei que você tá pensando em retrucar, mas não adianta discutir. Vai falar com o seu amigo Ryota. Eu sei que ele tem boas notícias.
Kenji baixou a cabeça, segurou as lágrimas e ainda assim assentiu.
— E lembra: viva… mas tema a morte. Porque ela pode separar você das pessoas que ama. Agora vai. Descansa. E não me faz me arrepender de ter apostado em você.
Kenji se despediu com um gesto tímido e deixou o hospital.
O sol se punha atrás das montanhas, tingindo o céu de laranja e vinho. O vento soprava leve, balançando os galhos das árvores nas ladeiras da vila. Kenji caminhava sozinho em direção à casa de Ryota, onde ele morava com o pai. Esperava encontrá-lo, talvez com alguma informação sobre um mestre de artes marciais — assunto de que vivia falando.
No caminho, entrou numa rua estreita entre duas casas já tomadas pela penumbra. O fim de tarde estava silencioso; só se ouvia o som de seus passos. Foi quando notou algo estranho.
Uma figura de capa azul-escura cruzou seu caminho às pressas e esbarrou de leve nele.
— D-desculpa… — murmurou a moça, antes de continuar correndo.
Kenji a seguiu com os olhos por alguns segundos. O coração acelerou sem motivo. Logo atrás, sombras se moveram. Três presenças distorcidas surgiram do escuro. Olhos vermelhos, aura densa a ponto de o ar tremer ao redor.
— Que sensação estranha… — sussurrou Kenji, escondendo-se atrás de uma parede de cimento velho. — É como se meu corpo estivesse avisando… que algo ruim tá vindo.
Ele observou enquanto os demônios contornavam os becos escuros, seguindo o rastro da garota.
Os punhos se fecharam sozinhos.
(Será que ela precisa de ajuda?)