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O Incompatível

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Chapter 1 - Propriedade da Herdeira

O mundo virou de cabeça para baixo, mas não fez barulho. Foi um silêncio que engoliu tudo. Na sala 3-B do Liceu Kitayama, o ar ficou parado. O projetor, o pessoal rindo baixinho, a caneta do Kenshi Minamoto no papel – sumiu tudo, virou nada. Não era físico, era na alma. Parecia que alguém tinha puxado o fio da existência dele.

Aí veio a dor.

Não era machucado, era pior, como se tivessem invadido. Algo frio, tipo um robô, tentou entrar na cabeça dele. Kenshi soltou um gemido, apertando a caneta até os dedos ficarem brancos. No escuro dele, onde o mundo era som, cheiro e toque, surgiu uma luz forte. Não era cor, era ideia, tipo uns cálculos tentando entrar na mente dele. Umas letras brilhantes apareceram atrás dos olhos: [Sistema de Evolução – Instalando…].

E aí, deu pane.

Um estalo forte, digital, deu ruim. A luz virou um monte de pedacinhos, cada um mostrando a mesma coisa sem sentido: [ERRO 0x7F-ALFA: ALMA INCOMPATÍVEL. NÃO ROLA.].

Aquela mão que segurava ele… escorregou. A força do puxão virou uma queda doida por um lugar que não era lugar nenhum. Kenshi não via, mas sentia: paredes de coisas que podiam acontecer rasgando em volta, cores gritando, gostos dando dor de cabeça. Tinha mais gente caindo. Ele sentia o medo deles, não no ouvido, mas como se o pânico estivesse por toda a parte. Uns cinquenta, talvez. E um por um, foram sumindo, virando nada. Acabou.

Ele devia ser o número cinquenta.

Só que o que fez ele ser incompatível serviu de escudo. Em vez de sumir, ele foi jogado contra um muro que nem devia estar ali. Parecia que tinha sido arremessado de um trem desgovernado contra uma parede gigante de borracha. A borracha rasgou e ele foi cuspido para fora.

A queda foi feia.

Ar. Diferente. Pesado, cheio de cheiros estranhos: terra molhada e podre, metal gelado, um cheiro doce e forte que lembrava incenso queimando carne. E o silêncio. Um silêncio tão grande que doía, cortado por respirações. Não eram adolescentes assustados. Eram respirações calmas, de gente grande. E o calor. Um calor forte vinha de um negócio enorme.

Kenshi estava de joelhos, o uniforme escolar todo rasgado e sujo de uma gosma brilhante. A espada de madeira dele, presa na cintura por costume. Os olhos azuis, sem foco, miravam no calor. O corpo tremia todo, mas a mente, acostumada a viver no escuro, agarrou a primeira coisa que conseguiu: a respiração.

Contou doze. Doze pares de pulmões, em volta do calor. E um décimo terceiro, maior, mais lento, na frente. O cheiro de queimado era mais forte ali.

— Que… que é isso? — A voz grossa veio da direita, parecia pedra raspando. Não era português, nem japonês, nada que Kenshi conhecesse. Só que as palavras entraram direto na mente dele, por causa de toda aquela confusão. — Um presente dos Deuses? Uma bomba?

— Cheira a gente — disse outra voz, mais fina, da esquerda. — Mas a alma… tá quieta. Estranhamente quieta.

Kenshi tentou respirar normal. Puxa o ar. Sente. Solta. Acha. O ar tava cheio de mana. Ele não sabia o nome da energia, mas sentia: forte, pesada, correndo como um rio por baixo. E o calor na frente era um sol dessa energia, tão forte que dava enjoo.

— Levanta aí, lixo. — A voz veio do sol.

Kenshi levantou. Doeu tudo, mas ele ficou de pé num chão liso e frio. Deixou as mãos abertas, não como se estivesse se rendendo, mas pronto para brigar. Notaram o gesto.

— Cego — falou a voz fina, agora interessada. — Tá olhando para o Rei, mas não enxerga nada. Um cego humano.

Riram baixo, sem graça. Vozes que não pareciam de gente.

— Como é que isso… isso… entrou na sala do trono? — perguntou a voz grossa. — Não vimos nada chegando.

O calor na frente de Kenshi mexeu. Fez a mana balançar. — O ritual da Aliança — disse a voz do sol, pensativa. Era homem, velho, com uma força que dava para sentir. — Sentimos alguma coisa estranha no ar. Eles estão tentando de novo. Só que esse… esse veio com defeito.

Kenshi engoliu seco. A boca ficou seca. Falar era perigoso, mas ficar quieto era pior. A vida dele dependia de acertar, agora. Aqueles caras não eram professores. Nem os caras que tinham pegado ele. Eram muito mais. A violência deles era normal, tipo respirar.

— Eu não… sou lixo — a voz dele saiu estranha, rouca da queda, mas firme.

O silêncio pesou mais que as risadas.

— Ah, é? — disse a voz do sol, o Rei. Parecia achar engraçado. — E o que você é, ceguinho, que caiu no meio dos meus Doze Guardiões?

Kenshi sentiu doze olhares, que antes estavam espalhados, agora furando ele. Estavam tentando entender. Desprezo. Curiosidade. Vontade de comer.

— Sobrevivente — disse Kenshi, firme. Era a única verdade.

— Sobrevivente — repetiu o Rei, pensando na palavra. — Dos cinquenta que pegaram, você foi o único que aguentou?

— Não — respondeu Kenshi, pensando rápido. Ele tinha sentido os outros sumindo. — Mais gente aguentou. Dez. Mas… foram para outro lugar. Eu fui jogado para cá.

— Jogado — falou a voz fina. — Por quê?

— O sistema… o que ia entrar na minha cabeça… não me quis. Deu erro.

Silêncio. Kenshi sentiu a mana mudar. Estavam olhando ele de um jeito estranho, não com os olhos.

— É verdade — disse uma voz nova, séria, como um relógio antigo. — Ele não tem a marca do Sistema de Evolução. Não tem energia divina. É… vazio. Um nada.

A palavra ficou no ar. Um nada. Inútil. Sem valor.

— Um nada não entra no meu castelo — o Rei pensou alto, o calor dele quase dando para pegar. — A não ser que o nada não seja nada. Malakar. O que você acha?

A voz do relógio, Malakar, respondeu. — Anomalia. A alma dele não combina com a dos Deuses. Um defeito que fez ele ser ruim para o ritual deles. Jogaram ele fora. Deve ter chegado até nós por… sorte.

— Sorte — falou o primeiro Guardião, com raiva. — Então mata ele e pronto. O sangue dele limpa o chão.

Kenshi não mexeu, mas se preparou para fazer alguma coisa, mesmo sabendo que não ia dar certo. Não tinha para onde fugir. A morte ia ser rápida e feia.

— Espera.

A voz nova não era dos Guardiões, nem do trono. Era de trás de Kenshi, de um canto escuro. Uma voz de mulher. Baixa, bonita, mas afiada. Parecia jovem, mas mandava sem pedir licença.

O calor do trono ficou estranho, não bravo, mas… curioso.

— Lyra. Estava aí?

— Sim, pai — a voz, Lyra, chegou perto. Kenshi sentiu ela passar por ele. Ela se movia como um redemoinho, suave e perigosa. O cheiro dela era jasmim e cinza, fogo controlado e força. — Um nada que sobreviveu a uma viagem entre mundos e não foi aceito pelos Deuses não é sorte. É útil.

— Um cego inútil? — caçoou a voz fina.

— Exato — respondeu Lyra, e Kenshi sentiu a atenção dela nele. Ela estava olhando, mesmo sem ele ver. — Cego, então não se impressiona com as luzes brilhantes dos Deuses. Sem o Sistema, não tem os defeitos que a gente já conhece. Os Deuses não quiseram ele. Isso deixa ele… interessante.

— Ser interessante não ganha guerra, Lyra — disse o Rei, mas ele estava testando ela.

— Claro que não — concordou Lyra, chegando mais perto de Kenshi. Ele sentia ela ali: alta, mais alta que ele. Ela não atrapalhava a mana da sala, mas a energia dançava em volta dela, forte e controlada. — Só que uma arma que os Deuses não conseguem ver é uma chave. Uma chave bem suja.

Kenshi ficou quieto. Estavam falando dele como se fosse coisa. Era ruim. Mas era a chance dele.

— Para que serviria? — perguntou o Guardião Malakar, direto.

— Para mim — Lyra disse a palavra com força. — Vai ser meu. Se não der certo, perdi tempo. Se der, vamos aprender coisas sobre os inimigos que a gente não conseguiria com luta.

Silêncio. Kenshi sentiu o Rei olhando ele, depois a filha.

— É arriscado — disse o Rei, por fim. — Trazer ele para cá. Ele é humano.

— Ele é nada — corrigiu Lyra, bem perto de Kenshi. Ele sentiu o calor dela, diferente do calor do trono. Era vivo, forte, perigoso. — Não tem casa. Não tem deuses. Só vive porque eu deixo. E eu posso fazer ele ser uma arma. Ou acabar com ele. A escolha é dele.

Kenshi entendeu que era a chance dele. Ou concordava, ou morria. A raiva cresceu dentro dele. Era a raiva de quem é tratado como lixo. Mas tinha também a vontade de sobreviver. A vontade que tinha ajudado ele a viver no escuro, que tinha feito ele aguentar a queda. Essa vontade dizia: Ela é uma tempestade. Dá para morrer na tempestade, ou aprender a navegar.

Ele levantou a cabeça, olhando para onde sentia ela.

— O que quer saber? — a voz dele saiu mais forte do que ele esperava.

Lyra fez um barulho, quase rindo. — Direto. Bom. Quer viver?

— Sim.

— Quer ser meu? Fazer tudo que eu mandar, virar o que eu quiser, matar quem eu mandar, morrer se eu mandar?

Kenshi pensou no escuro. Pensou na sala de aula, que tinha sumido para sempre. Pensou na queda. Na solidão. Aquela criatura que cheirava a jasmim e cinza era um lugar para se segurar. Ou era isso, ou nada.

— Sim — ele disse, e a palavra era uma promessa.

— Então ajoelha — Lyra mandou, a voz doce e dura.

Kenshi ajoelhou. O chão gelado tocou os joelhos dele.

— Estende a mão.

Ele estendeu a mão direita. Sentiu a mão dela pegar no pulso dele. Os dedos eram longos, fortes, e a pele era macia e quente. Ela apertou, não com carinho, mas marcando ele.

— Com a minha mana e o meu sangue, eu, Lyra, dona do Eclipse, pego essa vida para mim — a voz dela ecoou, cheia de força. O cheiro de queimado ficou mais forte. Kenshi sentiu um calor diferente vindo dela, pura energia escura. A mana dela entrou nele como ferro em brasa. Doeu muito, mas ele não fez barulho. — A sua respiração é minha. O seu coração é meu. A sua morte será minha. Você é meu. Diga seu nome.

Kenshi respirou fundo, a dor por todo o corpo. A marca não era no corpo, mas ele sentia, um novo ponto de referência no escuro, ligado ao coração dele.

— Kenshi — ele disse. — Kenshi Minamoto.

— Kenshi — ela repetiu, soltando ele. O toque sumiu, mas a marca ficou. — Agora, você é minha sombra. Minha arma. Minha coisa. Levanta.

Ele levantou. Nada mudou por fora. Ele ainda estava na sala do trono, cercado por seres poderosos e um rei que era um sol negro. Mas algo tinha mudado. Ele não era mais um nada. Era de alguém.

— A reunião acabou — disse o Rei, de novo com aquela voz chata. — Leve seu… brinquedo, Lyra. E veja se ele não vai dar trabalho.

— Não vai, pai — disse Lyra. Então, ela pegou no braço de Kenshi e puxou ele. — Vamos.

Ele foi, tropeçando no começo. Saíram da sala, deixando para trás o trono e o desprezo dos Doze. Andaram por um corredor comprido e frio. Kenshi sentia as paredes altas pelo eco dos passos. Lyra não fazia barulho.

— Aonde… você está me levando? — Kenshi perguntou, baixo.

— Para um lugar onde você serve para alguma coisa, ou onde você morre. Depende de você — ela respondeu, direta. — Os quartos da família real são nesse andar. Você não vai para lá. Vai para os quartos dos empregados, com as outras criaturas. Vai dormir com os fracassados do exército. É lá que guardam as ferramentas.

Kenshi concordou, pensando. Ele era um fracassado. Um nada. Deu para entender.

— E depois? — ele perguntou.

Ela parou de repente. Ele quase esbarrou nela. Sentiu ela virando, e de novo a atenção dela toda nele.

— Depois, você aprende — a voz dela estava bem perto. — Vai aprender a sentir o mundo como a gente sente. Vai aprender a lutar como quem quer viver mais um dia. E você vai começar agora. A minha mana em você é uma marca, mas também é um jeito de achar as coisas. Sente a energia da parede.

Ela pegou na mão dele e colocou na parede fria. Era pedra, mas… pulsava. Tinha um padrão, como veias.

— Não tem nada — disse Kenshi, confuso.

— Você está sentindo com a pele — ela respondeu, com raiva. — Não usa a pele. Usa o vazio dentro de você. A parte que não aceitou o Sistema. Ela está com fome. Deixa ela sentir. Sem pensar. Só sentir.

Kenshi fechou os olhos. Tentou esquecer o medo, a confusão, a dor. Pensou na pedra. E aí, lembrou da queda. Da sensação de ser vazio. Pensou na marca dela no pulso. E então, algo mudou.

A pedra não era só fria. Era… um sussurro. Uma energia tão baixa que quase não existia. Uma cor que não era cor. Ele viu na mente dele: a parede era cinza-azulada, com fios finos de prata, como nervos.

Ele respirou fundo.

— Bom — Lyra disse, sem elogiar. Só confirmando. — Isso é mana da terra. O sangue do mundo. Os Deuses chamam de sujo. A gente chama de vida. É isso que você vai aprender a ver. É isso que você vai aprender a usar. Agora, vamos.

A caminhada continuou, mas Kenshi era outro. O mundo não era mais só som e cheiro. Era um monte de energia. Ele sentia as coisas, não pela luz, mas pela energia delas. Foi assim que ele percebeu quando entraram nos quartéis dos empregados. A energia mudou. O cinza-azulado das paredes virou um monte de coisas mais quentes, mais bagunçadas, mais… vivas. Cheiro de suor, metal, comida e outras coisas que ele não queria saber. Vozes grossas, risadas, armas batendo, pés arrastando.

— Isso aqui é o esgoto — Lyra avisou, a voz alta para todo mundo ouvir. O barulho sumiu na hora, deixando um silêncio estranho. — Onde moram os que não são puros, mas servem para alguma coisa. Os mestiços, os monstros, os animais inteligentes. Você é mais fraco que a maioria. Mas tem a minha marca. Se alguém matar você, eu vou ter que me dar o trabalho de matar todo mundo. Então, provavelmente vão deixar você em paz. Provavelmente.

Ela empurrou ele para frente. Kenshi sentiu um monte de gente olhando. Não via os olhos, mas sentia o peso dos olhares, a raiva, a curiosidade. O cheiro era forte demais.

— Grol! — Lyra chamou.

Passos pesados chegaram perto. A energia que se aproximava era forte, cheirando a musgo e ferro velho. Era grande, maior que Kenshi.

— Princesa — disse uma voz grossa, leal.

— Esse é o Kenshi. Ele é meu. Arrume um lugar para ele dormir. Roupas que não cheirem a medo. E comida. Ele não vai treinar com os outros. O treino dele começa amanhã, comigo. Ninguém toca nele. Ninguém fala com ele a não ser para dar ordens. Entendeu?

— Entendido, Alteza — respondeu Grol.

Kenshi sentiu a mão de Lyra saindo do braço dele. Era como perder um escudo.

— Até amanhã, Kenshi — ela disse, mais longe. — Não morra. Ia me dar trabalho.

E então, ela foi embora. A energia dela, aquele redemoinho de jasmim e cinza, sumiu no corredor, deixando ele sozinho no meio do silêncio do esgoto.

O ser chamado Grol fez um barulho. — Vem, coisinha. E não sai de perto. Aqui, quem se perde… às vezes não volta.

Kenshi concordou e seguiu o grandão, tentando entender o caos em volta. Sentia os monstros, os mestiços que pareciam mais com gente. Sentia o ódio, a indiferença, a fome. Era um lugar ruim.

Grol levou ele para um canto numa parede de pedra. Tinha um colchão de palha e um cobertor. Cheirava a mofo e a outra pessoa.

— Aqui — disse Grol. — Comida chega no segundo sol. Banheiro lá no fundo. Não faça barulho. Não arrume briga.

E então, ele também sumiu.

Kenshi sentou no colchão duro. A adrenalina baixou. O corpo voltou a tremer, sem parar. Ele abraçou os joelhos, escondeu o rosto. A ficha do que tinha acontecido caiu.

Estava em outro mundo. Num mundo de monstros. Marcado por uma princesa demônio que era a única que protegia ele e a maior ameaça. Tinha um poder que não entendia. E tinha sobrevivido, enquanto outros tinham morrido.

Não sentiu alívio. Sentiu culpa, e um vazio que doía. Depois, bem no fundo desse vazio, outra coisa apareceu. Uma faísca. A faísca que tinha feito ele dizer sim. A faísca de sobrevivente.

Ele levantou a mão, a que Lyra tinha marcado. Na nova forma de sentir dele, o pulso brilhava com uma energia prateada, ligada à energia dele, mais fraca, mais quente. Era uma ligação.

A sua respiração é minha. O seu coração é meu.

Aquelas palavras não eram bonitas. Eram para mostrar quem mandava. Mas, no escuro do mundo novo, aquela ligação era uma linha. Algo para se segurar.

Kenshi deitou no colchão, de frente para a parede de pedra. Tentou se concentrar de novo, como ela tinha ensinado. Deixou o vazio dentro dele sentir. A parede respondeu com o sussurro dela, os fios de prata. Era lento. Era calmo. Era real.

O barulho do esgoto continuava: brigas, risadas, metal. Mas Kenshi focou no sussurro da pedra. Era a primeira lição dele. Era o som do mundo novo. E ele, o nada, a coisa de alguém, ia ter que aprender a ouvir bem se quisesse viver.