Naquela noite, Chen Shi não pregou os olhos. Passou a madrugada cultivando a técnica Três Luzes do Qi Reto, com os pés alinhados ao Norte Celestial, temperando-se sob as Sete Estrelas.
Li Tianqing, vendo-o tão dedicado, não pôde deixar de admirá-lo profundamente. Tentou acompanhá-lo na prática, mas logo se cansou e voltou para a cama.
Mesmo sem descansar um instante, a mão fantasma azul voltou a atormentá-lo, apertando seu coração cada vez mais forte. Felizmente, ele já sabia que, toda vez que matava doze pessoas, a mão o atacava à noite — por isso, havia se preparado.
Suportando a dor lancinante, continuou cultivando até o ataque passar. Só então ousou deitar-se.
Quando o latido dos cães soou, já era o amanhecer do quinto dia da transformação demoníaca.
Chen Shi e Li Tianqing saíram para procurar bestas espirituais. Precisavam reunir o máximo de alimento possível antes que a mutação avançasse — pois, à medida que ela se agravava, até as bestas espirituais acabavam virando estátuas de porcelana.
Sem comida no início, todos morreriam de fome depois.
O resultado da caçada não foi bom. Chen Shi chegou a ver um fengxi do mesmo tamanho que o que havia caçado dias atrás, mas a criatura parecia ter aprendido: ao vê-los, fugiu correndo, e nem os dois rapazes nem o cão conseguiram alcançá-la.
Conseguiram apenas uma camela espiritual — pequena, do tamanho de um cervo, pesando pouco mais de cem jin.
No caminho de volta à vila, passaram por alguns povoados. Em todos, as pessoas haviam se transformado em porcelana. Até a madrinha de Chen Shi estava entre elas.
Devia ser obra do Buda Profano.
"Se continuar assim," disse Li Tianqing, pesaroso, "Huangpo também não aguentará por muito tempo."
Os dois sentiram o coração afundar.
Ao chegarem a Huangpo, a avó Yu Zhu correu até Chen Shi e cochichou:
"Menino, tem visita na sua casa!"
Chen Shi se animou:
"Meu avô voltou?"
Ela balançou a cabeça, sorrindo de forma misteriosa:
"É uma moça… e das bonitas!"
Chen Shi ficou atônito.
‘Uma moça?’
Será que o dinheiro que deixara com o avô finalmente foi suficiente para ele comprar uma esposa pra mim?
Animado, perguntou:
"Quer dizer que já virei adulto? Como é que eu não sabia?"
Li Tianqing, curioso, foi junto — queria ver essa tal moça bonita.
A jovem não entrou na casa, estava sentada sob a velha árvore diante da porta. Vestia um casaco vermelho estampado com flores verdes e calças do mesmo tecido. Os cabelos, trançados em duas longas tranças, vinham de trás das orelhas e caíam sobre o peito.
Seu busto volumoso parecia esconder um tesouro.
A moça tinha um ar adoentado. Os aldeões, com pena, prepararam-lhe uma tigela de ensopado de carne.
Quando Chen Shi viu aquela jovem de beleza radiante, deu meia-volta e foi embora sem dizer uma palavra.
Li Tianqing o chamou:
"Xiao Shi, não vai pra casa?"
"Casa? Que casa? Essa não é a minha casa!"
Chen Shi piscou, fingindo confusão.
"Ah, entrei na casa errada. A minha é do outro lado da vila."
O cachorro latiu duas vezes, sério, como se dissesse que realmente haviam errado o caminho. Correu à frente, querendo guiar o dono desnorteado até o outro lado.
A moça, sorrindo, disse em voz suave:
"Continuem andando. Se forem embora… todos morrem."
Chen Shi se virou, forçando um sorriso surpreso:
"Ah, veja só! Então essa é mesmo minha casa! Que cabeça a minha! Até o Heiguo ficou confuso, não é?"
O cão sentou-se no chão, cabisbaixo, como se lamentasse o erro.
A moça riu friamente enquanto tomava o caldo, observando-os como quem assiste a um teatro.
Chen Shi caminhou até a porta, fingindo de repente reconhecê-la:
"Senhorita Jin? É a Senhora Jin? Não se lembra de mim? Sou o pequeno Chen! Nós nos vimos na Cidade Wuwang!"
Ele parecia genuinamente emocionado:
"Senhorita Jin, nós até tomamos chá na mesma mesa! Tianqing, venha, venha! Esta é a Comandante Jin Hongying, do Acampamento Shenji! Heiguo, venha cumprimentar a Senhora Jin! A Senhora Jin está ainda mais bela hoje!"
Falando e empurrando os dois para dentro, fechou a porta e ficou ofegante. O sorriso sumiu de seu rosto, dando lugar ao puro terror.
Li Tianqing também estava pálido — mas seus olhos não se voltavam para a porta, e sim para o canto da parede.
Ali estava um canhão — um Grande Canhão dos Bárbaros Ocidentais, alto como um homem.
Heiguo corria em círculos, tentando cobrir sua casinha, que estava cheia de balas de ferro preto.
“Bang!”
A porta foi arrombada. Jin Hongying entrou mancando, com uma tigela nas mãos e expressão sombria. Seus olhos passaram pelo canhão e pelas balas, e um sorriso frio surgiu em seus lábios.
Chen Shi sussurrou, pálido:
"Tianqing, roubar um canhão ocidental e esconder munição… que crime é esse?"
Antes que Li Tianqing respondesse, Jin Hongying gritou:
"Extermínio das nove gerações! E somem a isso o crime de fabricar pólvora em segredo — a vila inteira será decapitada! Ano que vem, por esta época, vocês já poderão renascer!"
Então, subitamente, seu olhar mudou. O rosto sombrio se iluminou com um sorriso:
"Mas esta senhora também não é sem coração. Tudo pode ser conversado. Se vocês me derem um pouquinho de carne, esta história fica esquecida. Estou morrendo de fome!"
Ela tomou o caldo de carne em grandes goles. Apesar da refeição, ainda parecia doente.
Após o confronto com o Buda Profano, havia ficado gravemente ferida e se refugiado em Fangdian para se recuperar. Mas a vila era pobre, mal sustentava a si mesma — e ela passou fome.
Quando começava a se recuperar, o Buda Profano chegou, transformando todos — inclusive a pequena afilhada e a madrinha — em porcelana.
Ela só escapou porque fugiu a tempo.
Agora o Buda Profano vagava pelas terras em busca de vivos, transformando cada um em estátua. Cidades inteiras haviam virado mundos imóveis de porcelana.
Ao perceber que ela estava ali apenas pedindo comida, Chen Shi criou coragem:
"Ah, então é a pequena Jin! Eu sei que você anda passando maus bocados… mas nossa vila não sustenta vadios. Se quiser comer, tudo bem, mas diga: qual é o seu talento?"
Ele a olhou de cima a baixo.
Jin Hongying sorriu languidamente:
"Meu talento é ter uma vida muito longa. Agora, moleque, vá logo preparar algo pra eu comer — senão como vocês dois!"
Chen Shi respondeu com um "sim" e foi cortar carne.
Li Tianqing o seguiu, preocupado ao vê-lo pegar a faca. Achou que ele fosse atacá-la.
Mas Chen Shi apenas fatiou a carne e começou a temperar.
"Xiao Shi, você não ia matá-la?"
Ele balançou a cabeça:
"Como eu poderia? Não sou um assassino. Lutar e matar… não é o meu jeito."
Li Tianqing o observou, confuso, até perceber:
"Você vai envenenar a comida!"
Chen Shi negou novamente:
"Alguém como Jin Hongying… mesmo gravemente ferida, enquanto não estiver morta de fato, não se deve atacá-la. Quando morrer de verdade, aí sim."
Li Tianqing ainda não entendia, mas Chen Shi sabia: Jin Hongying era poderosa o bastante para enfrentar o Príncipe Xiao Wangsun. Mesmo ferido e inconsciente, o príncipe ainda era protegido por suas duas espadas espirituais — tocar nele era morte certa.
Se ela ainda conseguia andar e falar, então sua força ainda estava ali. Nem com dez vidas ele ousaria atacá-la.
"Garotinho esperto," disse Jin Hongying, sentada à mesa, afagando a cabeça do cão e rindo.
Heiguo, deitado a seus pés, parecia até gostar do carinho.
Chen Shi preparou costelas ao molho vermelho, carne cozida e ensopado de almôndegas.
Jin Hongying devorou tudo sozinha — o suficiente para três pessoas.
Chen Shi teve que cozinhar novamente.
"Chen Shi," disse ela, já com as forças um pouco recuperadas, "vocês não poderão ficar aqui por muito tempo. O Buda Profano logo chegará. Precisamos sair o quanto antes."
Chen Shi balançou a cabeça:
"E as pessoas da vila? Se formos embora, elas morrerão de fome."
"Não morrerão de fome," respondeu Jin Hongying. "Sem carne espiritual, logo se transformarão em porcelana. Só sobreviveram até agora porque vocês dois lhes deram carne. Mas por quanto tempo ainda conseguirão sustentar uma vila inteira? Vamos os três juntos."
Ela parou, fez um carinho na cabeça do cão e completou:
"Levem o cachorro. Se faltar comida, sempre dá pra comer carne de cachorro."
Heiguo levantou-se de imediato, afastando-se dela.
Jin Hongying riu:
"Até entende o que eu falo, hein?"
Li Tianqing respondeu friamente:
"Comandante Jin, depois do cachorro, o próximo seria quem? Nós dois, certo? Afinal, não temos como resistir."
Ela deu um sorriso brincalhão:
"Tão inteligente… então começarei por você."
Chen Shi tentou aliviar:
"Irmã, nós ainda somos pequenos, não teríamos um gosto bom. Espere a gente crescer."
Jin Hongying riu:
"Dois garotinhos, uma dupla dourada… tão adoráveis. Quando crescerem, mudarei a forma de comer vocês."
Chen Shi não entendeu, achando que ela realmente queria devorá-los. Segurou a faca e a escondeu na manga.
Jin Hongying percebeu e riu:
"Guarde a faca. Não é esse tipo de ‘comer’ que estou falando."
Chen Shi, envergonhado, obedeceu:
"Então… que tipo é?"
Ela olhou para os olhos inocentes dele, corou e cuspiu de lado:
"Esquece!" — e mancando, saiu da casa. Do lado de fora, sua voz ecoou:
"Comam bem. Dou tempo para se despedirem dos aldeões. Não sou desumana. Podem deixar a carne espiritual para eles — assim vivem mais um pouco."
Chen Shi continuou cozinhando em silêncio.
Li Tianqing, alimentando o fogo, comentou:
"Essa irmã Jin é engraçada. Uma hora quer ser nossa mãe, outra hora nossa tia… e ainda quer nos comer! Diz que quando crescermos, o jeito de comer vai mudar. Agora entendo por que meu avô dizia que mulheres são imprevisíveis."
Chen Shi pensou e respondeu:
"Ela vive sozinha há muito tempo. Solidão faz as pessoas ficarem esquisitas."
De fora, Jin Hongying gritou:
"Eu ouvi! Seus pestinhas! Ficam falando de mim pelas costas? Vou arrancar suas línguas!"
Chen Shi murmurou baixinho:
"Viu? Temperamento difícil."
Li Tianqing completou:
"Meu avô dizia que, quando casam, melhoram."
"Vou entrar e dar uma surra em vocês!" — gritou ela.
Depois da refeição, Chen Shi lavou os utensílios e deixou um bilhete para o avô, pedindo que não se preocupasse.
Mesmo sem notícias dele há dias, acreditava que jamais seria abandonado.
"Quero acender incenso pra minha madrinha," disse Chen Shi.
"Que menino intrometido!" — resmungou Jin Hongying. — "Vamos todos!"
Ela achava que a tal madrinha era a árvore sagrada da vila, mas eles seguiram rumo ao campo.
"Xiao Shi vai embora?" — perguntou a pequena Yu Zhu, de olhos brilhantes.
Chen Shi assentiu:
"A carne que têm deve durar uns dez dias. Não economizem, comam à vontade. Eu voltarei e trarei mais."
Yu Zhu acenou, confusa, enquanto o via partir.
"Vovó, o irmão Shi está indo embora."
A avó Yu Zhu apoiou-se na bengala, observando de longe. Não disse nada para detê-lo.
As pessoas saíram de suas casas, olhando em silêncio enquanto ele se afastava.
"Ele já nos ajudou demais. Se ficar, será sua ruína," murmurou a avó.
Chen Shi, Jin Hongying, Li Tianqing e o cão chegaram à colina de terra amarela. Quando Jin Hongying se preparava para subir, empalideceu de repente e parou, olhando o terreno com espanto.
Chen Shi se virou, confuso:
"Irmã Jin, não vai subir?"
O suor escorria de sua testa. Olhou para Li Tianqing — ele já estava no alto, junto com o cão, sem nenhum problema.
Mas, assim que tentava dar um passo, o mundo girava e o chão sumia sob seus pés — o próprio céu amarelo desabava sobre ela.
O suor pingava em gotas grossas.
‘Se eu subir… posso morrer!’
"Este morro tem algo estranho. Algo muito, muito estranho!"
