Capítulo 1 – Kronos
Há cinquenta anos, cientistas tentaram alcançar o impossível: tornar a vida humana eterna. Mas, enquanto buscavam uma solução, tropeçaram em algo ainda mais inacreditável — uma brecha para outro mundo. Um plano paralelo, onde criaturas que considerávamos apenas mitos — elfos, kitsunes, dracônicos, nekomatas — viviam em relativa paz.
Eles não deviam ter tocado aquilo.
Em vez de os humanos invadirem aquele mundo, foi ele quem veio até nós. Algo deu errado, muito errado. A realidade se rompeu, e as raças de lá foram arrancadas do seu lar e puxadas para cá. Aquilo ficou conhecido como o Fragmento Zero.
Por algum tempo, os humanos tentaram acolhê-los. Mas era apenas questão de tempo até o medo se tornar ódio. Com o tempo, a tentativa de convivência se tornou apenas mais uma máscara — e logo uma nova líder emergiu.
Nix.
Ela surgiu como uma deusa — filha do então presidente — e, em um golpe que a mídia ainda chama de “transição pacífica”, assumiu o poder. Seu primeiro ato foi banir todas as raças não-humanas para o subsolo. Depois, ergueu Neo, uma cidade-estado tecnológica onde apenas os “puros” viviam à luz do sol.
O que parecia uma utopia logo revelou sua face verdadeira. Nix instaurou uma ditadura, calou opositores, queimou igrejas, baniu religiões, esmagou liberdades. E com isso… também levou meus pais.
Desde então, tenho aguardado… o momento certo para revidar.
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— Chefe? — uma voz feminina ecoa da tela flutuante à minha frente.
Eu ainda estava recostado na cadeira do escritório, lutando contra o peso nas pálpebras. O brilho suave dos painéis de vidro ao redor e o som distante da brisa lá fora quase me fizeram adormecer completamente.
— Chefe... CHEFE! — a voz aumenta, num tom impaciente.
Abro os olhos lentamente e encaro a tela holográfica flutuando sobre a mesa de mármore branco. Do outro lado, uma elfa loira de orelhas pontudas me encara com as bochechas infladas e os braços cruzados. Os olhos verdes brilham de leve irritação. Honestamente… ela está adorável assim.
— Tô acordado, Aerolin — murmuro, massageando as têmporas. — Já pode parar de gritar.
— Hmpf. Acordado agora, né? — Ela revira os olhos. — Começo a suspeitar que você transferiu a sede da empresa pra um país onde as raças mistas são livres só pra não ter que ir nas reuniões presenciais.
— Quem me dera — sorrio, levantando da cadeira com um leve estalo nas costas. — Mas você sabe, eu confio no seu trabalho. Não transferi a empresa pra fugir… eu precisava garantir que você pudesse viver com dignidade. E que continuasse recebendo seu salário, claro.
Ela cora um pouco, desviando o olhar.
— Tsc… mesmo assim, você exagera. Se continuar assim, vou acabar atravessando o oceano só pra te arrastar de volta — diz ela, tentando manter o tom sério.
Dou de ombros, me aproximando da mesa. O tablet vibra com os documentos recém-chegados.
— Por isso mesmo você é minha assistente número um — digo, assinando com um gesto rápido. — Tá tudo aí.
— Assinaturas recebidas — responde, já voltando ao modo profissional. — Agora vá descansar. Você tem olheiras. E amanhã tem mais contratos pra revisar.
— Sempre um doce, Aerolin — murmuro com um sorriso.
A transmissão se encerra com um leve som de desligamento.
Espreguiço-me com um leve estalo nos ombros e vou até a janela de vidro que ocupa toda a parede do meu escritório. A vista é absurda. Daqui de cima, da minha mansão cravada no topo da montanha, dá pra ver toda Neo se estendendo abaixo — uma floresta de aço e luz neon, pulsando como um coração digital.
É bonito. É frio. E é controlado por ela.
Se a imperatriz não existisse, talvez essa vista me desse algum conforto.
— Sirius? — a voz de Lyra soou clara no meu comunicador, com aquele tom entre seriedade e provocação.
— Encontrei algo. Vem até minha casa.
Eu levei um segundo antes de responder, os olhos semicerrados enquanto encarava o teto.
— Espero que dessa vez não seja só outro gato preso numa árvore, Lyra.
Toco no comunicador preso ao meu pulso, ativando a transmissão.
— A caminho.
Deixo o escritório atrás de mim e sigo em direção ao elevador no fim do corredor. Meus passos ecoam no chão de metal polido enquanto estalo o pescoço, soltando a tensão acumulada. Sempre que Lyra me liga com esse tom, significa uma coisa: problema à vista. E, se for grande o bastante, é certo que a mídia vai pintar minha cara como a de um terrorista de novo. Herói? Só no discurso de bar.
Entro no elevador e aperto o botão que leva ao subsolo. A luz fria banha o interior metálico enquanto o som grave da descida ressoa nos ouvidos. O elevador para. As portas se abrem.
Abaixo da mansão, o verdadeiro coração do meu lar pulsa: o bunker.
Engraçado como o mundo acha que essa mansão no alto da montanha é puro luxo. Ninguém imagina que a montanha é oca. Construímos de cima pra baixo — casa, bunker no meio e a garagem no nível mais baixo. Se alguém visita, a última coisa que vê é o que realmente importa.
Caminho pelo corredor central do bunker e, ao passar pelo sensor de segurança, um brilho branco percorre meu corpo, materializando um casaco longo, branco como neve suja, por cima de uma camisa chumbo. Calças reforçadas, botas táticas e luvas de combate com os dedos expostos completam o visual. Estilo? Claro. Prático? Sempre.
— Ativar protocolo de segurança: Aegis. — Minha voz é firme, quase indiferente.
Imediatamente, as janelas da mansão se selam com placas metálicas. As portas travam. Até a área da piscina, lá no topo, responde. Um compartimento oculto se ergue do chão e dele sai um leão de metal branco, seu corpo elegante e ameaçador como uma escultura viva. Seus olhos brilham com luz azul, enquanto começa a patrulhar o perímetro.
Meu guarda de ferro. Silencioso. Mortal.
Chego ao centro do bunker.
O teleporte. O anel de metal pulsa com luzes suaves em tons de azul, como se respirasse, aguardando minha ordem.
— Ativar função de teleporte.
Do meu cinto, um pequeno dispositivo se abre. Uma máscara escura com linhas de neon azul desliza e se encaixa sobre meu nariz e boca.
A luz irrompe do chão em espirais, engolindo meu corpo. Por um segundo, tudo vira branco.
E então… desapareço.
[...]
Uma luz suave pulsa no chão metálico assim que o teleporte se desativa. O ar aqui cheira a concreto velho e eletricidade estática.
Lyra me espera encostada numa das colunas, braços cruzados, o jaleco branco aberto por cima de uma blusa preta justa e uma saia combinando, marcando as curvas sob uma meia-calça escura. O cabelo castanho, cortado na altura dos ombros, balança levemente com a brisa artificial que circula pelo lugar. Ela me encara com aquele olhar de quem já me atura há mais tempo do que gostaria.
Dou uma olhada de relance para o dispositivo ainda vibrando atrás de mim e resmungo:
— Me deixar usar um dos meus veículos da garagem? Nah, claro que não. Melhor enfiar um teleporte gigante no meu QG e outro no porão da sua casa. Bem mais sutil. — Reviro os olhos e então olho direto pra ela. — O que você encontrou dessa vez?
Ela ergue um tablet e ativa a tela com um gesto rápido.
— Você estava procurando aquela rede de tráfico… de humanas e outras raças, certo?
— Entre outras coisas — respondo, me aproximando com um passo lento. O ar aqui parece mais pesado quando a palavra “tráfico” entra na conversa.
— Pois é — ela continua, deslizando o dedo pela tela — achei.
Dou uma risada breve pelo nariz.
— Me pergunto como a médica-chefe da Imperatriz descola esse tipo de coisa com tanta facilidade.
Lyra lança um olhar rápido por cima do tablet, como se já soubesse exatamente o que eu ia dizer.
Ela é mais que médica — é a sombra da Imperatriz Nix, a única pessoa em quem a tirana realmente confia. E o que Nix não imagina... é que a sombra dela também trabalha pra mim.
— Shhh. — Lyra faz, sem sequer levantar os olhos da tela. — Você invoca armas do nada, hackeia sistemas com o olhar. Eu tenho que andar na corda bamba pra não ser descoberta. Ainda bem que Nix acredita em mim mais do que acredita na própria mãe.
— Localização. Agora. — falo, direto ao ponto.
Ela desliza o dedo uma última vez.
— Enviado.
Uma tela flutuante se materializa diante de mim com um leve zumbido. As coordenadas piscam no centro. Reconheço o endereço — um prédio abandonado na zona C da cidade. Antiga fábrica de dispositivos. Nix mandou fechar há uns meses. Alegou que era um centro de atividades terroristas.
Claro. Sempre é terrorismo... mesmo que tenha sido só meia dúzia de civis gritando por liberdade.
— É perto. — A tela se apaga com um comando meu, dissolvendo-se no ar como poeira digital.
— Quer que eu deseje boa sorte? — pergunta Lyra, com um sorriso irônico.
— Já tenho o que preciso. — viro as costas pra ela e começo a andar. Meus passos ecoam no chão de metal, firmes, calmos.
[...]
Sabe... tem gente que sonha em ser o tipo de herói que fica no topo dos prédios, observando tudo lá de cima. Parece poético, né?
Mas a real? É frio, escuro, e o vento aqui em cima é horrível.
Ajoelho no parapeito do prédio e ajusto a visão nas lentes do visor. A imagem se aproxima com um leve brilho azulado enquanto o zoom entra em ação. O alvo está bem ali — um prédio esquecido, escorado na zona C da cidade. Cinza, rachado, com o tipo de iluminação que deixa tudo mais suspeito do que deveria.
Cinco caras no perímetro. Armados. Nervosos.
— Cinco do lado de fora — murmuro pra mim mesmo. — Com um pouco de sorte… não vão nem saber o que os atingiu.
Me levanto com calma. O vento sopra o casaco comprido, e por um instante fico só ali, em pé na beirada, como uma sombra contra o céu noturno.
Então, me lanço.
O corpo mergulha, e os pés deslizam contra a parede de concreto enquanto controlo a queda. O som do casaco cortando o vento ecoa entre os becos abafados. Um dos guardas se vira, confuso com o barulho.
Tarde demais.
Salto das sombras e envolvo sua boca com uma das mãos. A outra materializa uma faca — preta, com filetes azuis pulsando como se a lâmina tivesse sangue elétrico correndo nela.
Cravo no pescoço. Rápido. Preciso.
O grito engasgado morre na palma da minha mão.
Shhh…
Arrasto o corpo mole de volta para a escuridão, escondendo-o entre os destroços. Outro surge, vindo do fundo do beco. Um deles usa um manto preto longo, quase cerimonial. Quando ele me vê, arregala os olhos e grita:
— O... o Kronos tá aqui!
Ah, ótimo. Lá se vai a sutileza.
Dou um suspiro leve, quase frustrado, e deixo uma pistola se materializar na minha mão. Branca, com acabamento preto fosco e detalhes azul-neon. A energia dela vibra entre os meus dedos como se estivesse viva.
— Eu queria entrar discretamente… — digo, girando o pulso e apontando a arma pra frente. — Mas vocês decidiram transformar isso num show.
O beco explode em sons metálicos enquanto vários deles aparecem. Armados até os dentes. O tipo de valentões que acham que número substitui habilidade.
Eles não fazem ideia de quem estão enfrentando.
Aperto os dedos na empunhadura e dou um leve sorriso torto.
— Vamos acabar logo com isso.
O primeiro tiro atravessa o crânio do cara como se tivesse sido puxado por ímã. Antes mesmo do corpo cair, avanço e dou um chute no peito dele — o impacto joga o corpo morto contra outros três. Eles vão ao chão em um baque pesado, como peças de dominó.
Sem hesitar, giro os calcanhares e disparo nos três ainda caídos. Três tiros. Três acertos. Cada impacto é seco, preciso, cirúrgico.
O resto do grupo finalmente reage. Os estampidos das armas deles explodem ao meu redor, cuspindo balas na escuridão. Os flashes iluminam brevemente o beco como relâmpagos artificiais. Dou um sorriso de canto. Nada como um pouco de caos noturno.
Me movo.
Aos olhos deles, pareço um borrão. Um vulto. Um fantasma envolto em pólvora.
Deslizo entre os tiros, o casaco se agitando como fumaça. Em um piscar, desapareço — e no seguinte, estou atrás de um deles. O som abafado do disparo é o único aviso antes de seu crânio explodir numa flor de carne e osso.
Eles se viram, desesperados, disparando em todas as direções.
Eu sumo de novo.
E apareço ao lado de outro.
Aponto a pistola para onde eles ainda estavam mirando, como se atirasse no mesmo inimigo que eles.
— Só pra confirmar… a gente tá atirando em quem mesmo? — provoco com um meio sorriso.
Os olhos deles se arregalam. A hesitação custa caro.
Seguro a pistola com as duas mãos, viro de lado — estilo clássico, firme — e puxo o gatilho. Um único disparo. Direto na cabeça. Ele cai de joelhos antes de tombar, os olhos ainda tentando entender o que aconteceu.
Ainda faltam alguns.
E eu ainda nem comecei a suar.