POV do Lucas
Meu nome é Lucas Leister, tenho vinte e três anos, e agora sigo viagem para Almeirim ao lado da minha família, de Roberto e Jéssica. Atualmente sou um Guardião de Platina de nível quatro, e tenho como principal atividade a exploração de masmorras.
Já se passaram três anos desde o momento em que meu filho se juntou à família. Três anos desde que me tornei pai. Me acostumar à nova rotina ao lado de minha esposa e de uma criança pequena foi trabalhoso, mas não impossível. No fundo, até que foi tranquilo. O verdadeiro problema não estava no peso da vida doméstica, e sim em algo muito mais sombrio: Cynthia havia prometido entregar nosso primogênito à sua casa de origem – a Casa Boummut – em troca de sua deserção.
Lembro-me como se fosse ontem. A notícia da gravidez trouxe felicidade, mas a sombra daquele acordo logo transformou aquele brilho em algo amargo. O destino de nosso filho já estava marcado antes mesmo de nascer. E essa angústia nos acompanhou até o fim.
Quando Cynthia entrou em trabalho de parto, eu abandonei a missão que estava conduzindo em uma masmorra para correr até ela. Quis estar presente, quis segurar o pequeno Eddy em meus braços. E de fato, naquele instante, havia apenas alegria, uma esperança quase infantil. Mas a lembrança da promessa logo voltou, fria como um punhal. Assim como no início, a felicidade durou pouco – e rapidamente se tornou angústia. Nosso filho tinha vindo ao mundo, mas não para nós.
Cynthia sempre quis abandonar o peso do sobrenome que carregava. A Casa Boummut nunca foi um lar para ela, mas uma prisão na qual sempre quis escapar. Quando decidiu desertar, o preço exigido foi entregar o seu primeiro filho. Ela aceitou sem pensar duas vezes, como se a promessa fosse apenas um detalhe distante, algo que jamais se tornaria realidade. Mas a realidade veio, e veio cedo demais.
Teríamos que entregá-lo. Essa era a sentença. Nosso filho seria o pagamento por uma vida livre.
Mas o jogo virou. O meu pai, junto de um afilhado de confiança da própria Casa Boummut, intercedeu. Conseguiram convencer Jean-Luc em deixar nosso filho ficar conosco por tempo indeterminado. Um milagre político, ou talvez apenas uma manobra de interesse – pouco importava. Para nós, era a chance de viver ao lado dele.
Cynthia me confessou, certa noite, que não queria mais se misturar com aquele mundo. Nem os banquetes frios, nem as disputas de poder disfarçadas de sorrisos. Ela só queria ser esposa, mãe, uma mulher comum. E eu compreendi, pois queria isso também.
Então nos afastamos. Fomos para o interior do norte do Brasil, para uma região remota onde a poeira das grandes casas não nos alcançava, onde o barulho da política era apenas um rumor distante. Não havia luxo, mas havia paz. E com uma renda estável, suficiente para sustentar nossa pequena família, começamos a acreditar que, talvez, o destino tivesse nos dado uma segunda chance.
Foi nessa época que conheci Roberto e Jéssica, junto com os demais membros da guilda deles. Ficamos amigos rápido. Eu nunca tinha me fixado em nenhuma guilda, e isso já começava a se tornar quase uma obrigação. Eles me contratavam com frequência, principalmente quando havia necessidade de reforço em masmorras com muitos andares.
Naquele tempo, a guilda deles era grande – algo em torno de vinte e oito pessoas. Mas esse número logo começou a diminuir. Alguns receberam propostas melhores de grupos maiores e se foram. Outros… nunca voltaram.
Na primeira vez que perdemos alguém, lembro do silêncio que tomou conta do acampamento. Era como se a masmorra tivesse engolido uma parte de nós. Depois veio outra morte. E outra. No fim, entendemos que a morte nunca estava distante. Ela caminhava ao nosso lado.
Explorar masmorras ou enfrentar incursões nunca foi apenas sobre ganhar dinheiro. Sempre foi sobre sobreviver. Cada descida era uma roleta: ou retornamos com recompensas, ou não voltávamos de forma alguma. É por isso que nunca podemos nos deixar enganar pela facilidade das coisas. Masmorras são imprevisíveis, incursões ainda mais.
***
Depois das duas grandes incursões que aconteceram há seis anos, o mundo mudou para sempre. Foi o início da chamada Era dos Guardiões. A partir dali, tanto a política quanto a economia se transformaram. Governos se reorganizaram, mercados se ajustaram, e até o mais simples dos cidadãos passou a entender que vivia sob uma nova ordem.
Mas não foi só isso. As incursões começaram a acontecer com mais frequência, e as masmorras passaram a mudar diante de nossos olhos. Seus ecossistemas se tornaram instáveis, como se a própria natureza estivesse tentando se adaptar. Os monstros ficaram mais fortes, mais cruéis… e, em contrapartida, também mais inteligentes. Não era apenas uma questão de quantidade ou de ferocidade: eles estavam evoluindo.
E é isso que mais me preocupa, meu filho. Não as masmorras em si, nem mesmo as guildas ou as casas que disputam poder sobre elas. O que me assusta é o mundo ao qual ele irá pertencer.
Quando eu era criança, a situação do país era tudo, menos estável. A economia dava saltos gigantescos em questão de dias. Em uma manhã o dinheiro tinha valor, na seguinte já não comprava quase nada. E não havia caçadores em número suficiente para equilibrar essa realidade, mesmo em um território tão vasto quanto o nosso.
Por isso, meus pais viviam mudando de cidade. Eu nunca criava raízes. Nunca tinha tempo para chamar um lugar de lar antes de fazer as malas outra vez. Essa era a minha infância.
As coisas mudaram quando completei doze anos. Foi quando meu pai decidiu que já era hora de me treinar. Wilhelm Leister era respeitado como mestre de artes marciais, e havia muitos que buscavam sua instrução. Mas minha paixão nunca esteve nos punhos. Sempre foi a espada que me chamava.
Mas não havia quem pudesse me ensinar esgrima no Brasil. A única opção era aprender as técnicas marciais de meu pai, e assim fiz… até que ele nos trouxe a notícia que mudaria tudo: iríamos para a Europa. Minha mãe ficaria no Brasil, mas nós viajaríamos. Ele havia recebido uma proposta de alocamento vinda de seu país natal, a Alemanha.
Foi lá que tive, pela primeira vez, a oportunidade de treinar com um professor de verdade na arte da espada. Enquanto eu empunhava a lâmina pela primeira vez, meu pai trabalhava para erguer sua própria guilda de caçadores.
Mas houve um problema em meio a tudo isso: eu não era capaz de usar mana.
Neste mundo, existe um conceito universal conhecido como Os Três Caminhos. Cada ser humano carrega, em maior ou menor grau, a possibilidade de trilhar um deles. O primeiro é o Chakra, nossa energia física. O segundo é a Mana, energia espiritual. E o terceiro é o Éter, a fusão de ambos – o ápice da harmonia entre corpo e espírito.
Antes de dar o próximo passo e evoluir como espadachim, e também como caçador, tive que enfrentar a escolha que todo iniciante precisa fazer: qual caminho trilhar?
Mas, para mim, dois desses caminhos estavam fechados. O da Mana, impossível – meu corpo nascera sem o sistema necessário para manipulá-la. E, como consequência direta, também não poderia acessar o Éter por meios tradicionais, já que ele depende justamente da combinação daquilo que eu não possuía.
Minha mãe parecia sempre inquieta quando nos víamos. Havia preocupação em seu olhar, mas também algo que se misturava com frustração, como se tivesse gerado um filho quebrado, incompleto. Isso me corroeu durante algum tempo… mas não o suficiente para me deter.
No fundo, pouco importava o que me faltava. O que importava era a urgência de ficar mais forte. De avançar.
No entanto, adaptar o Chakra ao meu estilo de espada não foi nada simples.
A maioria dos estilos de combate atuais se apoia na Mana. Os golpes não são apenas cortes de lâmina, mas explosões de energia pura, revestidas de elementos, capazes de transformar uma luta em algo quase sobrenatural. E como alguém que não tinha esse recurso, estava condenado a lutar de forma crua e limitada.
Se quisesse continuar, precisaria encontrar outra saída.
Foi então que percebi que as lições do meu pai, que por muitas vezes relutei em aceitar, poderiam ser a chave. Golpes marciais – socos, chutes, cotoveladas – todos movidos pelo fluxo direto do Chakra. Eram técnicas físicas, mas possuíam uma potência que ia além da carne.
Comecei a experimentar. A cada treino, buscava formas de transferir a força do Chakra dos golpes marciais para os cortes da espada. Era como redesenhar meu corpo inteiro para que punhos e lâmina falassem a mesma língua. O movimento de um soco se tornava a base de uma estocada. O giro de um chute, o impulso para um corte diagonal.
A adaptação foi lenta e cheia de erros. Minha lâmina muitas vezes parecia pesada demais, como se rejeitasse o fluxo. Mas pouco a pouco, fui criando algo meu.
Um estilo que não era de puro Chakra, nem apenas de esgrima, mas uma fusão dos dois.
***
Existem centenas de pontos de chakra espalhados pelo corpo. Mas para manipular essa energia, é necessário alinhar os sete principais. Eles são o alicerce de todo o fluxo. Sem a harmonia deles, qualquer tentativa de controle é falha.
No entanto, mesmo com todos equilibrados, sempre existe um momento em que um desses chakras ressoa mais do que os outros. Essa manifestação é chamada de ressonância. É quando a energia de um ponto específico se conecta de forma mais íntima com a essência da pessoa.
Essa ressonância não só define as habilidades, mas também molda a própria personalidade. Por isso, uma pessoa pode ter, no máximo, três ou quatro chakras que ressoem de maneira significativa. Mais do que isso, até onde eu sei, é algo extremamente raro.
No meu caso, existem três. O chakra do Terceiro Olho, localizado na testa, que amplia minha percepção e me permite compreender vibrações que os outros sequer percebem. O chakra do Plexo Solar, no estômago, que fortalece minha vontade e vigor físico. E o chakra Raiz, na base da coluna, que me dá estabilidade e firmeza para não perder o controle diante de nada.
Essas três ressonâncias definem quem eu sou.
Ser caçador nunca foi só sobre atravessar uma masmorra e voltar vivo. Não basta ter força, não basta ter técnica. O mundo está mudando rápido demais, e aqueles que não conseguem se adaptar acabam virando só mais um corpo esquecido no fundo de um covil.
Eu aprendi isso na marra. Quando descobri a minha incompatibilidade com a mana, achei que seria o fim. Mas foi justamente a limitação que me obrigou a olhar para o Caminho do Chakra.
Agora que vivemos na Era dos Guardiões, onde as masmorras estão se expandindo e os monstros evoluindo, essa responsabilidade que tenho só pesa ainda mais. Eu tenho que proteger a minha família, e preparar meu filho para o futuro que o aguarda.
***
Carta de Lucas para a Mãe
Querida mãe,
Espero que esta carta a encontre em paz, mesmo em meio ao turbilhão desses tempos. Faz tempo que não nos vemos, mas queria que soubesse que estamos bem. Cynthia tem sido uma companheira firme, mesmo quando o peso da vida de Guardião nos espreita. E quanto ao seu neto… está crescendo forte e saudável. Todos os dias me surpreendo com a atenção e a esperteza dele. É curioso, como se o mundo inteiro despertasse interesse nos olhos daquela criança. Às vezes penso que ele enxerga mais do que devia para a idade.
O trabalho também tem seguido seu rumo. No momento, sigo a serviço da guilda Odysseus. Ainda não sei de me tornar um membro fixo, mas para mim, Roberto e os demais são mais do que aliados, são amigos. A rotina é dura como sempre, mas aprendi a não esperar facilidades neste mundo.
Imagino que você e o pai estejam ocupados, ainda mais depois das últimas ocorrências. Talvez leve tempo até ler estas palavras. Ainda assim, gostaria muito que pudesse conhecer o Eddy. Acredito que faria bem a ele sentir o carinho dos avós.
Deixo aqui o contato de Cynthia, caso queira falar conosco de forma mais direta. Ela ficará feliz em ouvir sua voz.
Com saudades,
Lucas
